Quando queremos começar a correr, nem sempre correr deve ser o primeiro passo.
Cruzei-me recentemente com uma ex-aluna do ensino secundário. Já passaram mais de 20 anos e não foi fácil reconhecer, à primeira vista, uma aluna que fugia das aulas de educação física suportada por justificações no mínimo duvidosas. Mas tudo ficou ainda mais estranho quando referiu que tinha na corrida uma paixão crescente que a levava a treinar todos os dias!
É incrível a quantidade de pessoas que, mesmo sem nunca terem praticado desporto na sua juventude, sentem um apelo, por vezes drástico, pela prática da corrida. Talvez porque se começam a preocupar com a sua auto-estima, com a melhoria da sua saúde e bem-estar. Alguns até se “obrigam-se” a ter este desígnio e inscrevem-se em Maratonas ou Meias Maratonas como forma de se sentirem forçados a treinarem regularmente. Ou então apostas com amigos, para aumentarem a dose de motivação necessária para terminar uma Maratona. Este fenómeno crescente tem aspectos muito positivos, mas levanta também um conjunto de potenciais problemas.
Sendo que estas situações são cada vez mais recorrentes, importa aqui deixar algumas sugestões.
Em primeiro lugar, percebermos a forma como temos tratado o nosso corpo e se fará sentido sujeitá-lo, de repente, a cargas físicas quando, por vezes, durante anos quase nada fizemos em termos de prática desportiva. E mesmo que se tenha tido alguma prática desportiva de juventude, há quanto tempo ela foi terminada? Que estilo de vida tem sido adotado? Quando crianças, sentimos uma capacidade inata para corrermos, o nosso corpo tem proporções mais favoráveis e um peso mais leve que facilita o seu transporte. Mas, quando a prática desportiva ficou para trás, como mudou o nosso corpo entretanto? Que reforço muscular existe ou se perdeu? Que capacidade de proteção de lesões? Que função respiratória tem sido treinada?
Estas são questões que me fazem lançar uma primeira sugestão: se a corrida, e o treino muscular, não têm feito parte da tua vida, não corras!
Neste caso, o pensamento deve ser dirigido para uma construção muscular prévia e até, se possível, técnica. Contacta um profissional de desporto, avalia a tua capacidade muscular e prepara o teu corpo para a corrida.
Se fizeres 4 sessões de treino de 10kms, totalizando cerca de 40kms numa semana, estarás a fazer mais de 50.000 passos por semana, com um impacto superior ao que tens na marcha. A cada apoio, terás de suportar o peso do teu corpo, mas terás também os teus órgãos pelos músculos do soalho pélvico; controlar a posição da anca e evitar oscilações dos teus joelhos na fase de apoio; terás de controlar a posição do teu tronco e para isso os músculos das costas e abdominais têm de estar preparados para controlar a tua postura; e terás de respirar com uma frequência respiratória mais elevada que levará a que mais músculos sejam solicitados. Tudo isto acarreta importantes exigências musculares. Será que faz mesmo sentido começares a fazer milhares de passos por semana, sem te preparares para isso? Se o fazemos noutras áreas da nossa vida, onde nos preparamos para as exigências com que nos vamos confrontar, porque não fazemos o mesmo com a prática da corrida?
Outro erro muito comum, é pensarmos que a prática da corrida, por si só, será suficiente. Não é! O desempenho na corrida exige, desde logo, que tenhamos uma boa capacidade muscular para lidarmos com o peso do nosso corpo. Não interessa se somos mais pesados ou mais leves, o importante é que tenhamos um bom nível de força para transportar o nosso peso e isso consegue-se com treinos orientados para a melhoria dos níveis de força.
Por isso, a segunda sugestão é simples: não inicies a corrida sem realizares treinos de força! Diria o contrário a um culturista: não faças apenas treino de força, sem manteres treino aeróbio regular. Isto claro pensando numa perspectiva de saúde e bem estar.
Está cada vez mais comprovado que a nossa saúde e longevidade estão associadas à prática desportiva. Os estudos multiplicam-se aumentando a urgência de uma prática desportiva regular e bem orientada. Não existe nenhum medicamento com a eficácia da prática desportiva para nos tornar mais saudáveis e nos fazer viver mais anos. Essa longevidade depende principalmente de dois grandes aspectos:
(i) a manutenção de bons níveis de força muscular, que representarão a manutenção de uma boa estrutura muscular e com isso evitar a perda de massa muscular que todos sofremos com o avanço da idade (sarcopenia);
(ii) uma enorme capacidade mitocondrial nos nossos músculos. As mitocôndrias são as nossas fábricas energéticas e por isso mesmo devem ser preservadas. É no seu interior que acontecem processos muito importantes que nos levam a produzir mais energia, necessária para as nossas atividades diárias.
Por isso mesmo, ser saudável e viver mais anos com mais qualidade de vida exige, da nossa parte, uma capacidade de misturarmos estímulos diferenciados com objetivos distintos. A diversidade de estímulos no treino é um dos segredos para atletas de alto nível, assim como, para ti, nos teus treinos diários. Para além de que poderá ser mais motivador e reduzir a probabilidade de desistência dos teus objectivos. E tudo o que queremos é consistência… porque sem ela, os efeitos dos teus treinos vão-se perdendo com o tempo.
E agora? Mais preparado(a) para tomares decisões mais assertivas?
Docente na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, Paulo Colaço tem também uma experiência de mais de 30 anos como treinador de atletismo em diferentes disciplinas do atletismo com um foco mais particular, nos últimos anos, na corridas de velocidade e de meio-fundo e fundo.
Ao longo dos últimos tempos acumulou igualmente diversas intervenções em diferentes desportos coletivos na área da condição física.