Fisioterapeutas: suporte fundamental Jogos Olímpicos

Fisioterapeutas: um suporte invisível fundamental nos Jogos Olímpicos

Do BemDo Bem
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07.10.2024
O papel dos Fisioterapeutas

Um fisioterapeuta desempenha um papel agregador em competições como os Jogos Olímpicos, facilitando o funcionamento harmonioso da equipa multidisciplinar. Ao conectar-se com diferentes profissionais e ao estar em contacto direto com o atleta, os fisioterapeutas garantem que todas as necessidades dos atletas são atendidas, promovendo a recuperação mais rápida de lesões e maximizando o desempenho físico. Mas não é só isso! O fisioterapeuta tem um papel fundamental na prevenção da lesão. E o que significa isto tudo na prática? É o que vos vou contar!

 

Posso descrever o fazer parte e estar nos Jogos Olímpicos como uma mistura intensa de emoções e experiências, uma “sopa” nas mãos de um gigante embriagado, onde tudo se mistura de forma indescritível, criando um ambiente único que dificilmente se encontra em qualquer outro lugar ou momento! Mas, à parte disso: qual o nosso papel – dos fisioterapeutas – em provas e competições deste género?

 

Eu sou o Ricardo Paulino e sou fisioterapeuta desde 2000. Fiz parte das missões Olímpicas de Pequim 2008, Londre 2012, Rio 2016, Tóquio 2021 e Paris 2024. E sou parceiro da DoBem.

 

Fazer parte de uns Jogos Olímpicos é como voltar à infância, onde tudo ao nosso redor parece gigantesco e de proporções épicas. Cada competição, cada preparação, cada interação com os atletas, é como revisitar essa sensação de grandeza, de fazer parte de algo muito maior do que nós mesmos.

Este carrossel de emoções nunca pára e é incrivelmente viciante para quem o vive. A preparação para cada prova, os momentos de introspeção dos atletas antes de começarem o trabalho e a entrada na câmara de chamada… Cada atleta é único, com suas próprias necessidades físicas e emocionais, e essa diversidade é uma fonte constante de adrenalina para nós, equipa que está nos bastidores, garantindo que tudo funcione perfeitamente.


O PAPEL DE UM FISIOTERAPEUTA NOS JOGOS OLÍMPICOS

 

 

Nas competições de alto rendimento o sucesso de um atleta não depende apenas do seu talento.  O treino é peça chave para isso e para que o treino tenha a sua aplicabilidade – é necessário estar junto do atleta uma equipa de profissionais que trabalham em conjunto para garantir que ele esteja no seu melhor. Entre eles, destaca-se o fisioterapeuta, uma peça-chave no contexto de uma equipa multidisciplinar.

Esta equipa multidisciplinar inclui médicos, biomecânicos, psicólogos, nutricionistas e, claro, os treinadores. O objetivo comum de todos estes profissionais é garantir que o atleta esteja física e psicologicamente preparado para enfrentar os desafios da competição.

A presença de diferentes especialidades cria uma rede de apoio que cobre as várias necessidades do atleta, desde o planeamento do treino até à recuperação de lesões. Neste contexto, o fisioterapeuta é essencial, pois intervém diretamente na prevenção de lesões, tratamento de problemas músculo-esqueléticos e otimização do desempenho físico.

O fisioterapeuta, ao lado do treinador, é o profissional que mais horas passa com os atletas, estabelecendo uma relação de proximidade e confiança que é fundamental para o seu desempenho e bem-estar. A convivência diária permite que o fisioterapeuta conheça detalhadamente não só o estado físico do atleta, mas também os fatores emocionais que podem influenciar a sua performance.

Por este motivo, o fisioterapeuta torna-se frequentemente o elo de ligação entre as diferentes valências da equipa. Sendo o profissional que está mais diretamente envolvido na avaliação contínua do estado físico do atleta, ele comunica com os médicos sobre a evolução das lesões, com os treinadores sobre a adaptação dos treinos às limitações físicas, e com os nutricionistas para ajustar a dieta às necessidades de recuperação.

O papel do fisioterapeuta nas Olimpíadas vai além da aplicação de técnicas manuais e da prescrição de exercícios de reabilitação. O seu corpo de saberes baseia-se em princípios científicos, apoiados por estudos clínicos e evidências que sustentam as melhores práticas para prevenir e tratar lesões. Técnicas como a terapia manual, a eletroterapia e o exercício terapêutico são embasadas por pesquisas em áreas como a biomecânica, fisiologia do exercício e neurociências.

No entanto, ser um bom fisioterapeuta exige mais do que conhecimento técnico. A capacidade de ouvir o atleta, de mostrar empatia nas fases de dor ou frustração, e de ser resiliente em situações de elevada pressão são qualidades essenciais.

 

 

A ENTREGA DOS FISIOTERAPEUTAS

Quando se trata de estar presente nos Jogos Olímpicos, o nível de entrega de cada membro da equipa multidisciplinar é absoluto. Não existem meias medidas. O ritmo é de tal intensidade que podemos afirmar, sem exagero, que estamos 24 horas em ação. A qualquer momento pode ser necessário prestar assistência, fazer ajustes no plano de recuperação ou simplesmente estar lá para o atleta, seja física ou emocionalmente.

O ritmo é tão intenso que perdemos por completo a noção do tempo. A organização do tempo é feita em torno dos atletas e das suas competições.

Neste contexto, é impossível sermos apenas “o profissional”. A linha entre o trabalho técnico e a ligação emocional com os atletas torna-se ténue. Ao passar tanto tempo juntos e ao partilhar momentos de enorme tensão e expectativa, acabamos por nos aproximar muito mais das suas emoções. Passamos a ser mais do que meros prestadores de serviços de saúde; tornamo-nos, em muitos casos, confidentes, ouvintes atentos e um ponto de apoio emocional.

Os atletas vivem momentos de grande pressão, e nós, enquanto fisioterapeutas, acabamos por ser o seu suporte em momentos de angústia, frustração, ou até de medo. Escutamos histórias sobre o que sentem, os seus receios e as suas dúvidas. Essa partilha torna-se natural, pois estamos ao lado deles nas vitórias e nas derrotas, nas recuperações rápidas e nas lesões inesperadas. É um tipo de ligação que vai além do profissionalismo e que requer uma sensibilidade especial.

Estar ali, nos bastidores, a apoiar no processo físico de recuperação e, ao mesmo tempo, ajudar a gerir as emoções que acompanham o percurso de um atleta, faz com que o papel do fisioterapeuta se expanda de forma natural.

 

 

A GESTÃO DE UMA LESÃO GRAVE: UMA HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO

Um dos momentos mais marcantes em que senti a verdadeira dimensão do meu papel ocorreu durante a gestão de uma lesão grave de um atleta, numa das edições dos Jogos Olímpicos (Rio 2016). Esta lesão foi um daqueles casos em que, até ao último momento, a dúvida pairava sobre se o atleta conseguiria competir. O stress e a incerteza eram palpáveis, tanto para o atleta como para toda a equipa. Os dias anteriores à competição foram uma verdadeira montanha-russa emocional e a tensão foi crescendo à medida que o treinador se mostrava cada vez mais angustiado com a possibilidade de perder aquele momento pelo qual ambos haviam trabalhado durante quatro anos.

O processo de gestão desta situação foi complexo e desafiador. A cada dia – e, por vezes, a cada hora – tínhamos de tomar decisões críticas sobre a evolução da lesão, sempre com base numa análise criteriosa da situação. O conhecimento profundo sobre a lesão em questão, aliado a uma abordagem estruturada e metódica, permitiu-nos definir etapas muito rigorosas para a recuperação do atleta. Cada fase tinha de ser cuidadosamente monitorizada para garantir que o progresso ocorria dentro dos parâmetros estabelecidos, e, ao mesmo tempo, proporcionar confiança tanto ao atleta como ao treinador.

Era uma corrida contra o tempo. Por um lado, havia a necessidade de permitir que o corpo do atleta recuperasse o máximo possível; por outro, havia a pressão para que ele estivesse pronto para competir. O conhecimento sobre a lesão foi a base para as decisões, mas a gestão emocional do processo foi igualmente crucial. O atleta estava sob enorme pressão, e o treinador – compreensivelmente – encontrava-se num estado de ansiedade extrema.

No final, conseguimos atingir o objetivo a que nos propusemos: o atleta entrou em competição, e em todos nós, apesar do desgaste emocional, sentiu-se um enorme alívio e satisfação por ter superado aquela situação. Foi um momento de enorme tensão, mas também de realização. O sucesso não foi só do atleta ou do treinador, mas de toda a equipa que esteve envolvida no processo, incluindo eu, enquanto fisioterapeuta. Ter a oportunidade de acompanhar a evolução do atleta e ver que, no final, conseguimos que ele competisse ao mais alto nível, foi um dos momentos mais gratificantes da minha carreira.

Embora eu considere exagerado afirmar que fui “fundamental” neste processo, reconheço que o meu papel, dentro da equipa multidisciplinar, foi decisivo para a gestão desta situação.

O vazio quando um atleta não pode mais competir

Se há algo ainda mais desafiador emocionalmente do que o momento da lesão, é o momento em que percebemos que um atleta de alta competição não poderá mais competir. Saber, com todos os dados em mãos, que um atleta tem um problema físico que o impedirá de voltar à sua paixão é algo que nos coloca perante um grau de humildade brutal. Nessas alturas, sinto-me como tivesse perdido os meus “poderes mágicos”, e percebo que sou apenas um ser humano, com limites.

É um vazio profundo. Sentimo-nos impotentes, como se tivéssemos falhado em dar ao atleta aquilo que ele mais deseja – a possibilidade de voltar a competir. A relação que estabelecemos com o atleta, o trabalho árduo de anos de treino e reabilitação, tudo parece ser questionado quando nos deparamos com uma situação irreversível. É um choque de realidade que faz lembrar que, por mais que saibamos, por mais que a ciência avance, não somos infalíveis.

A única coisa que nos resta, nesse momento, é aceitar a situação, ajudar o atleta a lidar com a perda e encontrar formas de reorientar a sua vida. Não há como fugir a esse confronto com a realidade. Devemos aceitá-lo, vivê-lo, e apoiar o atleta a readaptar-se, porque a vida continua, mesmo que o sonho olímpico, ou a carreira no desporto de alta competição, tenha de ficar para trás.

Este tipo de situação é talvez a mais desafiadora na vida de um fisioterapeuta, porque nos obriga a confrontar os nossos próprios limites e a nossa própria humanidade. Não podemos resolver todos os problemas, não podemos sempre “curar” ou “salvar” uma carreira, e essa compreensão traz-nos uma sensação de humildade imensa.

 

 


 

FISIOTERAPIA: FUNDAMENTAL NA PREVENÇÃO DE LESÕES


Na fisioterapia desportiva, a prevenção de lesões é, sem dúvida, um dos pilares mais importantes.

Como costumo dizer: “o segredo é antecipar os problemas”. A nossa capacidade de prever e evitar lesões, principalmente em atletas de alto rendimento, é resultado de uma combinação de experiência clínica, conhecimento científico e uma análise cuidadosa dos hábitos e das particularidades de cada atleta. Na verdade, quanto mais se conhece o atleta e os seus hábitos diários, mais fácil se torna ajustar procedimentos preventivos eficazes.

A prevenção de lesões começa muito antes de um evento traumático ocorrer. O papel do fisioterapeuta é muitas vezes semelhante ao de um estratega, que, através da observação, avaliação e monitorização constante, consegue identificar potenciais riscos antes que eles se manifestem. Isto é possível porque o fisioterapeuta está em contacto direto com o atleta, analisando o seu movimento, padrões de treino e resposta física a diferentes estímulos. Um estudo publicado na British Journal of Sports Medicine (2016) mostrou que a prevenção de lesões musculoesqueléticas, particularmente em atletas de alto rendimento, depende de programas de treino baseados na correção de desequilíbrios e fraquezas que possam levar a lesões futuras.

Se conseguirmos identificar pequenas irregularidades ou áreas de sobrecarga, podemos intervir preventivamente, ajustando o plano de treino ou introduzindo exercícios específicos de fortalecimento e flexibilidade para evitar lesões. É preciso as pessoas entenderem, a mais valia da personalização dos programas preventivos ajustados às necessidades de cada pessoa.

O conhecimento profundo dos hábitos diários do atleta é um dos maiores aliados na prevenção de lesões. Este conhecimento permite-nos ajustar procedimentos preventivos de forma mais eficaz, como, por exemplo, aumentar o volume de treino de forma gradual, introduzir exercícios corretivos para melhorar a biomecânica e garantir que o atleta cumpre um plano de recuperação adequado. Quando conhecemos bem o atleta, temos uma capacidade superior para detetar alterações subtis no seu comportamento físico, o que nos permite intervir antes que o problema se agrave.

O conhecimento científico na área da fisioterapia tem evoluído significativamente ao longo dos anos. Hoje, a prática baseada na evidência permite-nos desenvolver estratégias preventivas cada vez mais eficazes. No entanto, uma das maiores dificuldades continua a ser a desconstrução de mitos e estratégias de recuperação que são completamente nulas. A ideia de que o repouso absoluto é sempre o melhor remédio para lesões é uma dessas crenças ultrapassadas. Estudos demonstram que a mobilização precoce e controlada, bem como a realização de exercícios progressivos, podem acelerar a recuperação e reduzir o risco de lesões recorrentes.

Muitas vezes, o fisioterapeuta enfrenta resistência por parte de atletas ou treinadores que ainda seguem conselhos antiquados ou, pior, estratégias baseadas em informações não verificadas. O nosso papel, enquanto fisioterapeutas, é educar a equipa e os atletas, fundamentando as nossas recomendações na mais recente evidência científica. Esta atualização constante do nosso corpo de saberes é fundamental para garantir que estamos a oferecer a melhor abordagem possível na prevenção de lesões.

Uma das bases da prevenção de lesões reside na confiança da equipa no processo desenvolvido e na sua manutenção ao longo do tempo. Não basta criar um plano preventivo eficaz; é crucial que toda a equipa – fisioterapeutas, treinadores e o próprio atleta – confie nesse processo e o siga de forma consistente. Um estudo de 2020 da Journal of Athletic Training destacou a importância da adesão ao programa de prevenção de lesões como um fator determinante para a sua eficácia a longo prazo.

O maior erro que pode acontecer num processo de tratamento é, a meio do “jogo”, o atleta ou treinador optar por caminhos que lhe foram aconselhados por uma leitura na internet ou por amigos. A interrupção de um plano preventivo validado pode ter consequências desastrosas, levando a recaídas ou a novas lesões. A introdução de novos métodos, sem qualquer base científica ou experiência prática, coloca em risco todo o trabalho previamente desenvolvido. É essencial que a confiança no plano estabelecido seja mantida, e que as decisões sejam sempre fundamentadas em conhecimento validado e não em tendências passageiras ou informações não verificadas.

Espero que, com esta partilha, tenham conseguido perceber um pouco melhor qual o papel do fisioterapeuta na vida de um atleta de alta competição. Como intervimos, como trabalhamos com o atleta e com toda a equipa e quais as funções que assumimos dentro desse grupo – mas, sobretudo, a importância de integrares a fisioterapia como um aliado preventido indispensável.

 

 


O Ricardo Paulino é Fisioterapeuta Clinico e Desportivo e, para além de trabalhar diariamente com atletas de alto rendimento de atletismo, também presta serviços na Athletika, uma clinica médica e desportiva sediada em Linda a Velha e na Federação Portuguesa de Atletismo.