Tudo o que faço na vida tem de ter um sentido. Gosto de entender o porquê das coisas. Porque é que aquilo aconteceu e o que posso fazer para no futuro melhorar algo que não correu tão bem. Colocar as coisas nesta perspetiva torna a palavra “errar” em algo bom, desde que exista uma reflexão. Errar, ou o “não correu como o esperado”, ajuda-me a ser melhor no futuro. O que não significa que no momento da derrota eu não sinta uma tristeza e desilusão profunda. Isso aconteceu na meia maratona de Praga.
E agora assim de repente, estou a lembrar-me do momento em que estava a 100 metros de cortar a meta, cheia de dores de burro, prestes a terminar a minha prova e vi no mostrador: 1h31’. A partir do quilómetro 15 deixei de olhar para o relógio. Apesar de ter uma ideia do meu tempo, aquém daquilo que eu queria , foi inevitável soltar um “dass”, bem alto, e ser invadida por um sentimento de frustração e tristeza.
Não era isto que estava no plano. Eu queria bater o meu record de 1h29’. E mais “dass” estava porque sentia-me tão capaz.
Estava pronta para começar a chorar um pouco (porque me alivia bastante, quer em momento de frustração, tristeza ou alegria extrema) quando um rapaz na casa dos 30, russo, começou “no paleio” comigo. Não me largou durante toda a prova. Não cheguei a perceber se tínhamos o mesmo ritmo ou se ele estava encantado com a minha charmosa e sensual passada de corredora. Pouco importava naquele momento, eu só queria que ele “desamparasse a loja”, principalmente quando me disse que, se calhar, eu não estava preparada para correr ao ritmo de 4’05’’ min/km.
Eh pá, mas vamos lá ver, com todo o respeito que eu tenho por toda a gente — e disse isto só para a minha consciência — “O que é que ele sabe da minha vida enquanto corredora? Quem é ele para me dizer se eu estou ou não capaz ou se eu fui ou não imprudente na minha prova?”
Tendo ele razão ou não, que por acaso, depois de muita reflexão cheguei à conclusão que não, só nós é que sabemos de que fibra é que somos feitos, nós é que sabemos daquilo que somos capazes, não é agora um rapaz, com quem acabei de trocar cinco minutos de conversa, e que não se expressava muito bem, que vem agora alimentar ainda mais a minha frustração. O que seria!
É que ainda bem que fomos interrompidos por uma menina que queria colocar-me a minha medalha ao peito. Despedi-me dele naquele exato momento.
“Isso, Isabel. A medalha é tua. Mais uma prova superada. Mesmo com os tais percalços fizeste uma média de 4:15 min/km e sentes que não esgotaste o tanque. Estás em Praga. Fisicamente sentes-te incríBel. E tudo isto que te aconteceu tem um propósito. Reflete sobre isso.”
Malta! E a partir do momento que este pensamento me veio à cabeça, já tudo me fez sentido outra vez. Correr também tem destes desafios. E eu já percebi que não posso deixar que a minha expectativa controle a minha prova. Na verdade eu até já sei isto tudo, mas, por vezes, não sei o que acontece. Deixo-me levar.
Há muito tempo que não criava uma expectativa de tempo para uma Meia Maratona. Aliás, deixem-me até confessar-vos que foi a primeira vez, à séria, que fui focada no recorde. E agora pergunto-me: “Para quê, Isabel? Porque é que exiges tanto de ti?”, eu não exijo, mas às vezes também tenho de me obrigar a sair da zona de conforto para descobrir o que está do outro lado da linha. Imagina se corria bem? Era o “fim do mundo em cuecas”. Se estou capaz de melhorar? Claro que sim. E esta experiência vai ajudar-me a chegar lá.
Em primeiro lugar porque, e é mesmo verdade, eu não corro para bater recordes. Ter constantemente esse sentimento de desafio ou mesmo “obrigação” cria uma ansiedade e um nervosismo na minha alma que me faz perder todo o encanto que a corrida tem para mim.
Correr ansiosa tira-me o prazer da corrida. Não vejo nada à minha volta, não sinto o calor das pessoas, não desfruto das músicas ao longo da corrida e vou tão focada no ritmo do relógio que, por vezes, paro de escutar o meu corpo e, aí sim, distraio-me do meu propósito — o meu bem estar.
Mas, por outro lado, desafiar a mente também nos faz bem. Não gosto que me pressionem, tenho um sentimento de liberdade muito apurado e odeio que queiram mandar em mim, mas não deixa de ser positivo criar metas e, de uma forma saudável, competir com mente.
Correr uma meia maratona a ritmo competitivo, na preparação de uma Maratona, é algo que, como vocês sabem, eu gosto de fazer. Mas desta vez, mesmo estando a caminho da Maratona de Londres — saibam mais sobre este desafio aqui — quis fazer o meu melhor tempo aos 21 quilómetros. Simplesmente porque sentia-me capaz. Não basta querer, é preciso trabalhar nesse desejo. E eu fiz isso tudo. Então vamos a isso.
Acredito que muitos que estão a ler este texto até podem achar que estou a dar demasiada importância a esta prova, mas também sei que muitos outros se identificam com o que estou a escrever. Às vezes, criar estes pequenos compromissos ajuda-nos a superar metas fora da nossa vida desportiva.
Há malta que corre só para chegar ao fim; outros correm para melhorar o tempo; e tantos outros correm só para bater recordes; e depois há aqueles que misturam tudo isto. Eu desta vez escolhi a terceira opção.
Não ter baixado a 1h29’ não significa que não esteja em boa forma e no bom caminho para a Maratona de Londres, mas aqui a questão não era essa, entendem? Era uma espécie de aposta comigo própria. E este meu falhanço na conquista do meu melhor tempo à meia foi um excelente “abre olhos” para privilegiar aquilo que é o meu ponto forte nas Maratonas: correr com prudência e no ritmo estipulado porque tenho tempo de soltar o touro a partir do quilómetro 30.
Ainda hoje penso nas razões e acredito que quando correr a próxima Meia Maratona já vou conseguir ter certezas quanto ao que falhou — simplesmente porque vou tentar não repetir.
Fiz tudo aquilo que considero fundamental para o meu bem-estar até ao tiro de partida:
Hidratei-me muito bem nos quatro dias antes da prova;
Dormi as horas necessárias;
Respeitei o descanso e o ritmo dos treinos na semana anterior;
Tive uma alimentação adequada;
Não falhei com o meu Urbano. Não sabes quem é? Então espreita aqui o vídeo das melhores esfregas da minha vida;
Tomei o pequeno-almoço na hora certa;
Fui as tais quatro vezes à casa de banho “limpar a tripa”.
Então?!
Em primeiro lugar, e já aqui referi, embora não seja a principal razão, a ligeira ansiedade prejudicou o meu ritmo. Estive mais preocupada em olhar para o relógio do que escutar as sensações do meu corpo. Com isso esqueci-me de ir buscar a energia dos apoiantes, de desfrutar da maravilhosa paisagem da cidade de Praga e de estar em paz e plena na minha bolha.
Sentia-me confortável no ritmo de Meia Maratona, mas estava stressada. “Para quê?”
Eh pá, não sei, é o que é. Naquela altura estava focada no meu objetivo. Na verdade, esqueci-me, naquele momento, que o meu grande objetivo é estar sempre feliz e plena a correr, apesar do desafio. Esqueci-me desse detalhe. E fiz merda.
Em segundo lugar, e por consequência, o meu ritmo, ligeiramente mais rápido do que o meu objetivo inicial, obrigava-me a estar mais concentrada na minha respiração.
O plano era começar a 4’10’’ min/km. A partir do quilómetro 16, se me sentisse bem, aumentava gradualmente a velocidade até 3:58 min/km. Na verdade, comecei a 4:05 min/km. E eu aceito que o ritmo deveria ter sido o estipulado, mas sentia-me bem e capaz.
Há momentos da nossa vida que, se temos a vontade, devemos arriscar. E eu decidi manter-me naquele ritmo. Teria sido imprudente que a minha quebra ao quilómetro 15 fosse fruto de algum cansaço de quem começou além do que conseguia (como me disse o tal russo). Só que não. Eu abrandei a partir dali porque fui invadida por uma imbatível dor de burro. Igual à dor que senti quando corri a Maratona de Sevilha há dois anos — recorda aqui a minha aventura.
É uma dor que começa do lado direito da barriga, ali bem juntinho à anca e que vai subindo até ao peito e depois ainda fica mais evidente no ombro. Não sei se já sentiram isto mas é só terrível. Para essa dor desaparecer tinha de parar — e isso nem pensar — ou abrandar para a dor diminuir.
Eu já conheço a sacana da dor. E sabem porque é que ela também apareceu? Porque um minuto antes eu tomei meio gel e não bebi água para “o empurrar”.
Curioso que, quando partilhei no meu Instagram a minha experiência sobre a Meia Maratona, falei deste tema do gel e, logo de seguida, recebi uma mensagem de uma seguidora, chamada Filipa Fernandes. Admira o pai pelo seu espÍrito de maratonista e chora de orgulho pelo seu amor e dedicação às corridas. A mensagem que eu recebi fez-me sentido:
“Quanto ao gel, pela alta concentração que tem de glicose e iões, quando chega ao estômago tem de ser diluído, caso contrário o organismo vai buscar água ao meio menos concentrado para o diluir, logo o gel não é absorvido”
Ora bem! E eu não bebi água. E depois de refletir neste tema também cheguei à conclusão de que, de todas a vezes que bebo gel sem água, a sensação não é a melhor.
Não via nada — qual paisagem, apoiantes e voluntários. Eu só tinha vontade de desistir. Ainda por cima, pessoal, o russo não me largava. Também ele abrandou o ritmo. Ele no final, depois de eu lhe dar muitos minutos de silêncio, disse-me: “bom…. vou ter com a minha mulher.” Sabem que mais? Ele deve pensar que eu não sei nada disto. O que ele queria sabia eu. Ou não.
“Aguenta Isabel. Agora o teu objetivo é simplesmente não andar e terminar a meta a correr, ainda que lento”, e assim foi até cruzar a meta, nada ofegante ou mesmo cansada, simplesmente aborrecida. E aborrecida por estar aborrecida.
O Rui Geraldes chegou nos minutos seguintes e era só gritante as diferenças de estado de espírito de cada um. O Rui está sempre bem. Mesmo quando as coisas não correm bem, ele privilegia sempre a experiência de estarmos todos juntos numa cidade diferente. E isso é incrível.
Gosto muito dele. Dele e do João. São como irmãos para mim. Estamos sempre juntos nestas aventuras das Maratonas. Mas a verdade é esta: o Rui não vai à Maratona de Londres, e o Rui foi correr sem um objetivo, apenas para desfrutar e correr de acordo com as sensações.
O meu caso era diferente, portanto, sinto-me no direito de respeitar o meu estado de espírito e permitir-me a viver o meu momento de tristeza. Aliás, acho mesmo importante esta permissão e não ter receio ou medo de mostrar uma fraqueza. É simplesmente uma condição nossa e encará-la de frente só nos torna mais fortes. Mas só depois, porque agora vou deprimir!
O João Catalão bateu o seu recorde pessoal com 1h15’ e uns pózinhos. E tudo correu como o previsto. As minhas queixas não foram as dele. Ele foi mais prudente e consciente do que eu. Na verdade, eu acho mesmo que deveria de ter começado a 4’10’’ min/km. Sabem porquê? Estaria menos ansiosa e controlaria melhor a minha respiração.
Estas experiências fascinam-me. Nenhuma corrida é igual à outra e em todas aprendemos algo. E nesta eu percebi claramente que, apesar de já ter corrido mais de 15 meias maratonas e 6 maratonas, ainda não tenho maturidade — e maturidade não é o mesmo que capacidade — suficiente para correr a 4’05’’ ou 4’10’’ min/km durante longas distâncias como neste caso, numa prova de 21 km. Tudo porque entro em stresse. Ainda não sei andar nisto a 100%.
Mas são estes desafios e aprendizagens que me dão motivação para continuar a correr. Quero correr sempre feliz, seja para bater recordes ou simplesmente para desfrutar, e para isso tenho de estar atenta aos meus sinais. Estou nesta vida com o propósito de aprender. Aprender comigo, com os outros e com as experiências que a vida me coloca. E isto que me alimenta e dá sentido ao meu conceito de felicidade. Ser feliz só dá trabalho se não quisermos escutar os sinais que o corpo e a mente nos dão.
Hoje estou feliz. Corri a Meia Maratona de Praga e ainda fiz 1h31’. Não terminei desgastada e isso só prova que estou em condições para desfrutar dos 42.195m da Maratona de Londres. Este é o meu grande objetivo. Praga era o teste para perceber o meu tempo à Maratona.
E depois disto, a sete dias da prova, só tenho a dizer que o meu treino está feito. Cumpri com o calendário. Agora, como diz o João Catalão, “se o melão vai estar em condições para o comermos? Isso só vais saber quando o partires ao meio”.
Vamos a isso. É uma Major, caraças! E eu vou lá estar! Que sorte a minha!
A Isabel Silva nasceu a 8 de maio de 1986 e é natural de Santa Maria de Lamas. Licenciou-se em Ciências da Comunicação, pela Universidade Nova de Lisboa, e fez uma pós-graduação em Cinema e Televisão pela Universidade Católica. Fez um curso de Rádio e Televisão no Cenjor e foi o seu trabalho como jornalista e produtora de conteúdos na Panavídeo que a levou para a televisão, em 2011. Durante 10 anos apresentou programas de entretenimento e, de forma intuitiva e natural, percebeu que aquilo que a move é a criação de conteúdos que inspirem, motivem e levem os outros a agir. Tem uma paixão enorme por comunicar e tudo o que comunica está intimamente ligado a uma vida natural carregada de energia, alegria e simplicidade.
É autora dos livros “O Meu Plano do Bem”, “A Comida que me Faz Brilhar”, “Eu sei como ser Feliz” e da coleção de livros infantis “Vamos fazer o Bem”.
Descobriu a paixão pela corrida em 2015, em particular pela distância da Maratona – 42.195m. Tem o desejo de completar a “World Marathon Majors” que inclui as 6 maiores Maratonas do Mundo. Já correu Londres, Boston, Nova Iorque e Berlim.
A 14 de Dezembro de 2016 lançou o blogue Iam Isabel e que hoje, numa versão mais madura, mas igualmente alegre e enérgica, é o canal DoBem.