Um misto de culpa e de impotência, intercalado, muitas vezes, por pânico.
Sentimentos quase constantes e incontroláveis motivados pela perceção aguda da crise climática e das suas consequências, o terrível medo de um futuro (presente) apocalíptico para o qual estamos a contribuir com a atividade humana, a sensação de ameaça permanente e insidiosa sobre uma Natureza em perigo. O receio da obliteração da beleza do mundo, do luto ecológico, é alimentado todos os dias por notícias de todos os cantos do planeta a um ritmo alucinante: incêndios, temperaturas que batem recordes, cheias, tempestades, extinção de espécies, secas – sinais irreversíveis e inequívocos dos danos que a humanidade tem vindo a infligir à casa que habita. Essas notícias não trazem verdadeiramente novidade, mas confirmam e amplificam a angústia labiríntica de um estado de “fim de jogo”. É como se soubéssemos que o nosso dispositivo vai ficar sem bateria e, a cada dramática notificação, o fim fosse mentalmente antecipado e não tivéssemos connosco qualquer carregador ou mecanismo que nos salve. Assim vai o mundo. Assim vai a nossa mente.
Durante grande parte da minha vida, não estive “nem aí” para o Planeta, escudada numa indiferença forjada de inconsciência e de uma certa (completa) ignorância – quem não sabe não vê e não (res)sente. Queria lá saber! – não pensava nisso, tinha coisas mais importantes para fazer e a natureza era um simples cenário; quando muito, importava-me no verão, em tempo de férias, em usufruir da praia limpa (lixo no mar ou no areal era desagradável, mas não chegava para beliscar a minha alienação), respirar desafogadamente (que chatice a qualidade do ar com os incêndios…), comer bem (mas outra vez? Como assim, não há salada de tomate porque choveu muito e atrasou a colheita?!). Havia um longo hiato, uma espécie de venda, que me impedia de estabelecer o nexo de relação entre a origem de tudo o que consumia e o capital natural – na minha cabeça, eram coisas distintas e distantes.
E, apesar de ter raízes rurais, a vida fez-me romper e afastar dessas origens profundamente ligadas à terra e desconectar-me, perder a ligação e a noção de que NÓS somos parte integrante da NATUREZA, nós somos natureza.
Algo mudou mais tarde. Tudo começou com o plástico e com uma acérrima (e confesso agora, absolutamente exagerada) cruzada antiplástico, depois de perceber o seu impacto nefasto nos ecossistemas marinhos e depois de ter despertado para o facto de não existir o “fora” da expressão “deitar fora”, quando falamos de lixo. Podes ler a minha história pessoal de transição ecológica no meu primeiro artigo da Do Bem, aqui.
Comecei por querer banir completamente aquele material – o que, além de irrealista, é estúpido -, depois percebi a sua importância quando (se) bem usado e o seu valor; o problema dos descartáveis extrapolou no meu trajeto da esfera do plástico e amplificou-se para outros materiais – porque é disso que se trata sempre: passagem do paradigma do descarte (e do fim) para o paradigma da (re)valorização e da vida.
A situação de seca hidrológica e a sucessão de incêndios castastróficos deixaram-me em alerta máximo e obcecada com a redução do consumo de água em casa. Descobri os contornos e efeitos do desperdício alimentar e era um desespero sempre que descartava comida. Ou seja, à medida que ia conhecendo com mais profundidade os problemas, adicionava mais uma frente de luta e a minha (agora) hiperlucidez fazia constantemente a conexão entre esse gesto e o seu impacto ambiental.
Sentia-me a entrar numa espiral sem retorno de perfecionismo ecológico, de ressentimento e de raiva: nada do que fazia ou pudesse fazer era suficiente.
O meu despertar ambiental alterou a lente com que via o mundo e as minhas ações: uma ânsia de fazer mais, porque o que fazia me parecia tão insignificante e resvalava nos muros da indiferença do “sistema”, e a perceção das minhas limitações. Entre a aspiração do meu discurso e o que conseguia (consigo) alterar na minha vida vai uma grande distância, motivada por um contexto próprio, pela presença de outras pessoas. E a inércia começou a consumir-me a esperança. A aparente lentidão da mudança e da adesão da sociedade à mesma exasperava-me. O conflito foi-se agravando, a sensação de solidão também perante a inação e a criminosa desresponsabilização política (o “bla, bla, bla” – acusação certeira da Greta), a desilusão face à quase irrelevância das COP e o agudíssimo desespero a cada novo relatório do IPCC.
Até que li, creio que em 2018, numa entrevista a Anne-Marie Bonneau, uma ativista californiana, “zero waste” chef e autora de um livro dedicado à cozinha sem desperdício, aquilo que me pareceu ser a descrição perfeita para o que sentia e como me sentia: “ecoansiedade”. Foi um alívio perceber que havia mais pessoas a sentir o mesmo, que não estava sozinha naquela “depressão verde”.
Nos Estados Unidos, desde 2017 que se reconhece a ecoansiedade; a revista Lancet alerta para este fenómeno desde 2015. Por sua vez, especialistas do Departamento de Cuidados Primários e Saúde Pública, do Imperial College, reconheceram que os complexos efeitos psicológicos da ecoansiedade estão a aumentar, assim como o seu impacto “desproporcional” em crianças e jovens. Uma investigação de 2020 junto de psiquiatras infantis em Inglaterra mostra que mais de metade (57%) segue crianças e jovens angustiados com a crise climática e o estado do meio ambiente.
Num certo sentido, aquela entrevista com a Anne-Marie “salvou” a minha saúde mental. Lembro-me bem do efeito-abraço que uma das frases que pronunciou teve em mim: “Nós não precisamos de uma mão cheia de gente a fazer “zero waste” de forma perfeita (ou de ambientalistas perfeitos); nós precisamos, em todo o mundo, de milhões de pessoas a fazê-lo de forma imperfeita (de ambientalistas imperfeitos)“. Respirei fundo, reconheci e aceitei a minha imperfeição. Tinha encontrado a minha “tribo” (a dos ambientalistas imperfeitos) e uma fonte de resiliência emocional: o poder dos pequenos gestos individuais e a força para exigir dos outros, das empresas e do poder político, responsabilidade, transparência e transformAÇÃO.
Enfrentamos, enquanto humanidade, o período mais crítico da nossa existência, aquele que coloca em causa a nossa sobrevivência neste planeta. Por isso, ninguém é demasiado pequeno para contribuir e nós precisamos de todas as pessoas: os ativistas convictos, os imperfeitos, os indiferentes, todos. Precisamos também de esperança ativa e de narrativas que nos inspirem (chega de arautos da desgraça) pelo seu exemplo prático. Precisamos que nos mostrem as soluções, de perceber que há uma janela (ainda que exígua) de ação. E, por fim, quando se fala de ecoansiedade, precisamos também de perceber que se, para alguns, esse estado de processa ainda no plano da antecipação; para muitas populações já afetadas diretamente pelas mudanças climáticas e desastres naturais delas decorrentes, ela é real, constante e irreversível.
O que me ajuda a combater a ecoansiedade?
Eunice Maia é a fundadora da “Maria Granel”, a primeira zero waste store e mercearia biológica 100% a granel em Portugal.
Autora dos livros “Desafio Zero – Guia prático de redução de desperdício dentro e fora de casa” e “Diz não ao desperdício com o Simão” (em co-autoria com a Betweien). Escreveu o prefácio da edição portuguesa do livro “Zero Waste Home”, de Bea Johnson, uma das suas maiores inspirações.
Vencedora do prémio nacional Terre de Femmes, da Fundação Yves Rocher, para a preservação da biodiversidade. Encara a sustentabilidade do planeta como uma missão de vida.
É uma ativista que luta pelo consumo consciente, pela redução de desperdício e por um estilo de vida low waste. Criou o “Programa Z(h)ero”, projeto educativo ambiental premiado de redução de desperdício em ambiente escolar e empresarial.