A Maratona de Boston de 2018: a força da mente

A Maratona de Boston de 2018: a força da mente

Partilhar as minhas vivências foi algo que sempre gostei de fazer por aqui. Desta vez, conto-te como foi correr a Maratona de Boston.
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06.05.2018

Acho que todos os heróis que correram estes 42.195m pensaram desta forma. Mesmo os corredores mais competitivos, que correm para bater recordes e para melhorarem as suas marcas, certamente acordaram na madrugada de 16 de Abril (sim porque, para o tiro de partida acontecer às 10h00, envolve uma logística que, no meu caso, me fez acordar às 4 da manhã) pensaram duas vezes na sua estratégia de prova: não ter, simplesmente. E tudo porque esta foi a Maratona com a piores condições climáticas na história da Maratona de Boston.

  • Temperatura de -1ºC
  • Sensação termica de -4ºC
  • Chuva forte
  • Vento de frente

…ao longo de TODO o percurso, num constante sobe e desce. Com este cenário, o meu objetivo era simplesmente terminar… chegar ao fim da linha e colocar ao peito a minha primeira medalha das Six Major* (*são 6 as maratonas que fazem parte da World Marathon Major, e Boston é uma delas. Ainda tenho Tóquio, Berlim, Londres, Chicago e Nova Iorque à minha espera… mas muita calma nessa hora. Uma de cada vez, e cada uma tem de ser vivida com a intensidade que merece. Eu tenho tempo…só preciso de saúde, certo?!).

Era só isto que me movia. Foi apenas este o meu foco durante as 3h33… bem sei que valeu pela superação, por ter sido uma prova de sobrevivência e de muita força mental…mas a verdade é esta: eu não desfrutei, eu não sorri (do jeito que a corrida merece), muito menos senti o prazer de correr uma Maratona. Não chegou o fantástico calor humano dos apoiantes, da mesma forma que não chegou o carinho e dedicação dos voluntários da prova. Ou se calhar foram mesmo eles que me ajudaram, também, a chegar ao fim… e o meu foco, claro. O tal lado raçudo que herdei da minha família paterna – aquela teimosia do bem que te leva até onde tu acreditas que consegues…

 Okaaaaayyyyy! Faz sentido…

Mas agora penso: é só por isto que eu corro? Para me superar e para dizer que cheguei ao fim com um medalhão? Nem pensar! Eu tenho de curtir pessoal! Eu tenho de sentir a DOR PRAZEROSA, a ADRENALINA em ALTA e o CORAÇÃO a chorar de alegria e entusiasmo… porque é isto que move a minha vida pessoal e profissional. Não sei se me consigo explicar… é a tal “cena” de viver o momento enquanto corro e não estar constantemente projetada no objetivo final. No fundo, é sentir o apoio, lembrar-me dos rostos de quem sorriu para mim, de quem me deu um “give me 5”, lembrar-me das localidades por onde passei, conseguir bailar com o “ombrinho”, suavemente, quando passas pela banda que está a tocar para ti, conseguires ler alguns cartazes com frases que te motivam e emocionam… é conseguires correr sem teres a chuva INTENSA a tapar-te a visão e o vento a travar-te os movimentos (e olhem que o meu core estava fortíssimo e tinha nas pernas alguns treinos de escadas e de serra)…

Eu não tive nada disso! Eu corri a pensar no Km em que ia começar a sentir os meus pés, a pensar no frio horroroso e implacável que sentia nas mãos (mesmo com luvas) e como seria o momento em que tinha que tirar um gel da minha flipbelt para me alimentar. Não dava para “sacar” do gel… as minhas mãos não tinham sensibilidade! E o meu corpo não tolera o frio…

Tive momentos que me apetecia parar de correr. Não porque estivesse fraca, não porque não estivesse preparada… simplesmente porque estava triste por correr naquelas condições. Foi tão dura a minha preparação – por causa da minha lesão e do pouco tempo de treino – e no final não tive prazer absolutamente nenhum. Foi por isso que chorei descontroladamente ao cortar a meta!! Recebi um abraço caloroso de uma corredora e retribuí com uma beijoca repenicada. Ela falou comigo e sei que disse coisas lindas, até porque senti naquele momento… mas já não me … eu estava cega e já só queria a minha medalha!! Foi ela que me valeu. E foi só mesmo quando a vi que, aí sim, eu explodi de alegria e senti-me a mais incríBel Maratonista do Mundo… e arredores.

NOTA: Avançando um pouco no tempo, dia 28 de Abril, fiz a minha segunda corrida depois da Maratona de Boston. Fomos todos: Rui Catalão, Rui Ascensão, João Catalão, Catarina Coito, Carla Ferreira e Fernanda Prim – foi tão bom! Vejam só, foi aquele dia apenas para, juntos, tirarmos a tão aguardada fotografia com a t-shirt e a medalha da Maratona. No dia da prova era impossível, não só pelo mau tempo e por chegarmos a horas distintas, mas também porque aqui a vossa amiga, mal cortou a meta, estava a “rapar” tanto frio que entrou em hipotermia… mas já lá vamos. Durante os nosso 10 prazerosos quilómetros a revivermos, novamente, a nossa aventura em Boston, dizia-me o Rui Catalão:

“Sabes, eu vivi alguns anos em Amesterdão e todas as preparações das minhas Maratonas foram em condições semelhantes ao tempo que apanhamos em Boston. Por essa razão, eu não sofri da mesmo forma que tu sofreste. Eu consegui, apesar das adversidades, curtir a prova e manter-me sempre muito positivo”

Isto para vos dizer que, a minha experiência certamente é diferente de tantos outros corredores. Lido melhor com o calor do que com o frio. O Rui é exatamente o contrário (dou o exemplo da minha Maratona de Roma. Nesse dia estava muito calor e para mim, ao contrário dele, nem sequer foi um problema). Resumindo e baralhando: é esta a magia das Maratonas. Nenhuma é igual à outra e mesmo que sejam iguais, cada corredor é único e terá sempre uma historia diferente para contar. 

 

Malta… isto foi só uma introdução! Vou continuar….

1º: Porquê chegar a 11 de ABRIL ?

Este foi o nosso dia de chegada a Boston! É a primeira Maratona fora da Europa, neste caso, nos Estados Unidos e a diferença horária é de 5 horas, logo, tivemos o cuidado de chegar com algum tempo de antecedência para o corpo se habituar ao clima, ao fuso horário e à própria dinâmica da cidade. Acreditem que tudo conta para estares na melhor forma possível no dia da prova. 

Estávamos todos tão felizes neste dia! Não fui só eu com uma lesão. Posso dizer-vos que o Rui Catalão lesionou-se a meio da preparação e desde o início de Março que praticamente não corria; o Rui Geraldes passou pelo mesmo duas semanas antes e a Catarina, esse furacão de mulher, tinha apenas como treino longo, por exemplo, uns modestos 12 kms. Cada caso é um caso e, na verdade, todos nós já temos, pelo menos, duas maratonas concluídas, o que nos permite ter um melhor conhecimento e consciência das capacidades e limites do nosso corpo. Temos memória muscular e sabemos o que podemos encontrar depois do km 30 e isso, de certa forma também nos dá alguma confiança. Para além do mais, esta é a Maratona que qualquer corredor deseja. Ela é a mais famosa e tradicional corrida de longa distância realizada em todo o MUNDO. É a segunda mais antiga (a primeira Maratona foi realizada em Atenas) e acontece sempre no Dia do Patriota. Alguns dos maiores corredores da história já marcaram presença aqui, como a nossa poderosa ROSA MOTA! Para além disso, para participar nesta prova, o atleta tem de se qualificar e ter o tempo exigido para a sua faixa etária.

Agora pensem: feliz por ter sido a seleccionada e a dobrar porque levo comigo a minha família das corridas! Não aguento! É bom demais para ser verdade! É uma viagem única e merece todo o respeito e dedicação. Desde Outubro que sabíamos do nosso apuramento (e agora assim de repente senti-me uma super atleta de elite com o que acabei de escrever), por essa razão, não correr em Boston não podia acontecer!! E fomos. E corremos. E todos temos a medalha. Oh yeeaaahh!!! 

“We are Boston Strong”

Estão a ver? Também “curti”!!! Foi uma experiência arrebatadora que vou guardar no meu coração para sempre. Mas… serve este BLOG para desabafar, certo?… e a pessoa tem de deitar tudo cá para fora. Já passaram 4 semanas e eu ainda tenho tudo tão vivo na minha cabeça…

Agora de repente lembrei-me do momento em que estava, depois do final da prova, à espera da minha mochila com a muda de roupa… ao vento e à chuva e cheia de frio, pedi ao homem que estava ao meu lado para me abraçar. Chorava de frio e chorava muito porque sentia dor. E dizia – “Abraça-me por favor. Não aguento o frio!!!”. Eu tremia tanto que o senhor não teve coragem de ficar indiferente. Pelo contrário… foi um querido! Isso… eu disse “senhor”: infelizmente podia ser meu pai! Imaginem que era um pito descomunal e acontecia ali “amor à primeira vista”?! Seria incríBel. Ficava logo em brasa!! Só que não… dali, quem me aqueceu foram os cobertores a vapor, na tenda dos cuidados médicos. É porque não tinha de ser… ’né?

2º: semana do tapering 

As semanas de tapering são sempre as duas últimas antes da Maratona. E, nesta fase, o teu treino já esta feito. A partir daqui é reduzir a carga e ritmo para potenciar o teu desempenho no dia da Maratona. Reduzir o número de treinos, sim, e quanto a estes, devem ser curtos e intensos para o corpo não adormecer.

E não duvidem, se estiverem lesionados (muitas vezes estes azares acontecem a dias da prova) não se preocupem: mais importante do que treinar é descansar, dormir e comer, porém, este último ponto, tem de ser sempre na dose certa. Se o teu organismo não está a queimar tanto, não precisas de comer mais pensando já no dia da prova. Não concordo com o “enfardanço”, com a desculpa de que “precisas de acumular energia para o dia da prova”. Calma! Precisas de sentir que tens um touro para soltar e não um elefante, certo? Convém não engordar nesta fase – basta 1 kg a mais para eu sentir logo no rendimento. Comer bons hidratos, legumes, proteína, mas evitar tudo o que sejam lambarices com açúcares refinados, gorduras, refrigerantes, etc. Falo por mim! Se vem o desconsolo, mando abaixo o meu delicioso chocolate da Iswari ou o meu salame de noz e cacau (a receita está no meu segundo livro – A Comida que me faz Brilhar).

A grupeta ficou toda na mesma casa. Alugámos um Airbnb a cerca de 40 minutos do centro e foi nessa zona que fizemos os nosso 3 treinos. Treinamos quinta-feira, sábado e domingo. E só no último é que percebemos o temporal que íamos apanhar na manhã de 16 de Abril…

 

QUINTA-FEIRA: Um dia de sol e calor. Corremos 50 minutos a um ritmo muito confortável. Esta era as traseiras da nossa linda casa.

SÁBADO: Um dia de sol. Mais frio. Corremos 30 minutos + 5×100 metros.

Este treino soube mesmo bem. E aqui sublinho a importância das rectas para ativar o organismo. Até às duas últimas semanas o nosso corpo está habituado a treinos de alta intensidade. De repente, reduzes em 70% a tua carga e intensidade. Se juntares uma viagem com um fuso horário de 5 horas, é normal que o teu corpo esteja “baralhado” e precise de um “empurrão” para despertar. Foi isso que fizemos. Eu e o João gostámos tanto que quisemos repetir a dose no domingo. Os Ruis preferiram descansar e porque, na verdade não sentiram essa necessidade. Escutar os sinais do corpo é fundamental. Temos ritmos e energias diferentes, logo, os treinos não devem ser todos iguais.

DOMINGO: Vejam bem a nossa roupa neste dia. Muito frio, sensação térmica de -2ºC e… NEVE!

 

Acho que nunca tinha corrido com neve. Foi a primeira vez e, confesso, como era um treino curto, de certa forma tornou-se prazeroso. Quando chegamos a casa, aí sim, ficamos apreensivos. Estava o Rui Catalão sentado na mesa a beber um chá e a analisar a meteorologia para o dia seguinte:

“Bom… se vocês acham que hoje estava frio preparem-se porque amanhã vai estar muito pior: não vai nevar, é certo. Mas contem com chuva intensa, vento forte e temperaturas negativas.”

O Rui também ia correr e, apesar de ter vindo de uma lesão, tinha uma “ligeira” vantagem: está habituado a correr com muito frio (as tais memórias das preparações no inverno rigoroso da Holanda). Quem manda viver num Portugal maravilhoso? A malta não está habituada! E foi a partir daqui que comecei a ficar preocupada… pela simples razão de perceber que talvez não conseguisse desfrutar da prova do jeito que eu idealizei…

Todos temos um ponto fraco, e o meu é não saber lidar com o frio. Lembram-se da minha Meia Maratona de Paris há dois anos? Essa foi outra bastante desafiante para mim. Não tanto pelo percurso, mas sobretudo pelas baixas temperaturas. Eu que adoro sensualizar de top e calção, nesse dia, minha gente, eu corri de calça preta, longsleeve azul, luvas e fita na cabeça, a tapar as orelhas.

 

 

6 de Março de 2016 – Meia Maratona de Paris. 

Para que saibam… tirando os últimos dois quilómetros da Maratona de Boston, nunca na vida tinha corrido com tão pouco estilinho. E explico-vos porquê.

3º: OutFit da Maratona

Sabia que ia estar frio no dia da prova, mas nunca ao ponto de quebrar a tradição do meu outfit de maratonista:

  • Top
  • Calção preto justo, com aquele comprimento médio sem dar a mínima hipótese do calção subir e dar ênfase à coxa. É que se for muito curto, eu que tenho uma coxa bem torneada e consistente, não fica elegante porque, por vezes, o interior das minhas coxas roçam uma na outra e faz ferida. Soltei agora uma gargalhada com este desabafo, mas certamente que alguns de vós estão a concordar comigo. Isto só não me acontece quando não tenho retenção de líquidos.
  • Flipbelt para guardar os meus 5 géis
  • Peúga de runner mas aquela curtinha, sabem?
  • Sapatilha para “buuuuaaarrr”

Na verdade, tudo isto é verdade. Mas para esta Maratona, o meu kit não está completo. Decidi, 30 minutos antes de sair de casa, que afinal ia levar uma longsleeve, um gorro e um buff. E não ficamos por aqui!! Mas já lá vamos. 

Eram 22h30 quando me fui deitar e ja tinha deixado tudo pronto. Ao lado da minha cama tinha tudo o que precisava para correr a Maratona. Mais, até já tinha colocado no top o meu dorsal – 9557. Porém, não estava 100% confiante quanto à roupa. E isso estava a tirar-me algum entusiasmo. Não suporto ter frio e sabia, pela experiência na Meia de Paris, que esse sacana podia prejudicar-me no que toca ao meu entusiasmo ao longo da prova. Malta!!! Não é à toa que o parto da D. Lola durou 15 horas – “Bélinha, tu estavas no quentinho e não querias sair”. Pois não! Mas saí… a ferros. Saí e aqui estou eu. Sou super friorenta! Um dia destes mostro-vos os cobertores da minha cama nos meses de Verão. Lembrem-me para partilhar…

Adiante!…

Acabei por adormecer. E dormi profundamente. Por acaso, ao contrário de muitos corredores, eu durmo sempre bem na véspera da Maratona. Durmo tão bem que, quando o despertador toca eu, por momentos, penso em continuar ali, de pestana fechada mais 5 minutinhos (tenho sempre essa opção no despertador… ele toca, mas eu sei que posso estar na ronha mais um pouco… daí a nada toca de novo). 4h00 da manhã. Tudo a acordar! Despertei bem, a sentir-me confiante. Fui à casa de banho e fiz logo o número 2. Check!! Bom sinal. Sinal de que me alimentei bem na véspera (já vos mostro o meu jantar pré-maratona) e que comi na dose certa. Equipei-me, preparei o pequeno-almoço para levar comigo, vesti o fato de treino… e sentei-me à espera do resto do grupo. Entretanto diz o Rui Catalão:

“Ora…vai estar o pior tempo de sempre alguma vez visto nos últimos 30 anos da história da Maratona de Boston”, estou a ver na meteorologia.

Táaaaa beeeimmmmm! Mau tempo já eu apanhei tantas vezes e, interessa saber, nas provas o calor humano e a dose extra de entusiasmo também aquece. Verdade!

“Sensação térmica de -4ºC!” – diz o Rui Catalão

“Eu já decidi… vou levar uma camisola” – diz o Rui Geraldes

“Eu vou levar duas camisolas” – diz a Catarina Coito

Então e eu? Vou de TOP, simplesmente?! Comecei a ficar ainda mais assustada. Pior! Stressada! Nervosa! Indecisa! Porém, nunca insegura! Apesar das minhas dúvidas, e acreditem que muitas das vezes são imensas, há sempre uma certeza: quando não estou segura quanto a algo, não arrisco. E portanto, acabei por decidir levar uma longsleeve que, ainda por cima, só tinha feito um treino comigo, há bem pouco tempo, de 50 minutos. Nunca levar roupa nova para a Maratona. Levar sempre aquela à qual estas mais habituado a fazer longos. Quebrei esta regra. E quebrei porque, mesmo sendo verdade, nós é que criamos as nossas próprias regras e só nós conhecemos o nosso corpo melhor do que ninguém. Se desistisse da prova por hipotermia, eu nunca me iria perdoar. Nunca perdoaria o meu descuido e o pouco respeito que tive pela mãe Natureza. Vesti a camisola, coloquei o dorsal na frente e vamos embora!! Verdade seja dita – o meu sexto sentido nunca me deixou ficar mal. E bendita seja hora em que coloquei no saco, à ultima hora, o buff e as luvas. Foi o que me valeu.

Depois da maratona, quando fui tomar banho, só senti uma assadura e foi na coxa direita. De resto, impecável! Minha rica longsleeve, minha rica Asics que nunca brinca em serviço. Era, literalmente, uma segunda pele. Moldava-se ao corpo e, apesar da chuva, não “pesava” no meu corpo. Corri sempre “solta” em moBimentos aerodinâmicos! Mas a sofreeeeeer! Agora rio… só para não chorar!

Valeu o Buff do trilho dos Açores que fiz há 3 anos. Valeu o gorro…mas entendem o estilinho Imaginem esta fotografia sem o aparato que eu tinha na cabeça? É que eu aqui, até estava a mostrar os dentinhos… eu pareço uma ninja! Só me falta “sacar” da espada e cantar o genérico das Tartarugas!

 

4º: Chegada a Hopkinton – Ponto de Partida

Apanhámos o autocarro das 6h00 da manhã, no centro de Boston, rumo à localidade de Hopkinton. Não passávamos despercebidos! Todos tínhamos um impermeável cor-de-rosa que comprámos nos chineses, ainda em Portugal. E faz todo o sentido ser de uma cor a dar sainete. No meio de tantos atletas, se nos perdêssemos, sabíamos sempre onde estávamos. 

 

Quase uma hora de viagem. Acabei por adormecer… e amolecer. Foi bom aquele momento. Mas depois foi terrível chegar, abrir a pestana, meter o pé na rua e realizar aquilo que me esperava – eu vou correr uma Maratona neste cenário “de guerra”! Estava taaaaanto frio, chovia taaaanto e eu estava tão agasalhada! Só imaginava o momento em que tinha de me despir… mas aguenta coração, porque ainda é cedo. Eu só arrancava às 10h25 e o meu relógio ainda não tinha chegado às 8h00.

Há imagens que valem mais do que mil palavras – vejam o tal “cenário” de que vos falo. Estávamos dentro destas tendas, rodeados por lama, à espera da nossa partida. O que vale é que chegou a hora do pequeno-almoço e serve este aconchego para motivar… assim como, e considerem este ponto muito válido para mim, casas de banho sem fim. Não há filas… UAU! Excelente organização. É mesmo chegar, fazer e vencer! 

 

O meu pequeno-almoço

Bom, devo dizer-vos que foi insuficiente! E tudo por causa do tempo. Nunca, em tempo algum, tinha corrido naquelas condições, por essa razão, não tinha a real noção do meu desgaste. Foi tudo tão difícil que, acredito claramente, se tivesse mais reservas de energia teria sido, não mais fácil, mas talvez menos difícil. Valeram os géis da CLIFF dados pelos voluntários… porque os meus estavam na flipbelt “congelados”… e ali ficaram, até chegar a casa. 

Comi, como sempre, duas horas e meia antes:

  • No meu tupperware tinha papas de arroz integral com feijão Azuki + Banana + 1 colher de Despertar de Buda + Canela + Limão

Este é o meu pré-treino ideal para longos e provas. Claro que, 45 minutos antes, ainda como uma banana e, logo a seguir ao pequeno-almoço tomo sempre um café e 2 a 3 quadrados de chocolate (neste dia levei o de menta e chocolate da Iswari – podem comprar no site e usem o meu código ISILVA para ter um descontinho, é sempre uma ajuda). Conseguimos tomar um café porque, nas três tendas dos atletas tínhamos à nossa disposição café, mas também:

  • Chá
  • Bagel
  • Barras
  • Géis
  • Pão

Ali ninguém passava fome. Excelente organização e, sobretudo, torno a realçar a simpatia e o olhar carinhoso de todos os voluntários. Ali, minha gente, nós somos uns heróis. Basta estares ali… se ali estás, é por mérito teu. Vales pelo teu esforço e os americanos reconhecem isso. Por outro lado, convinha ter espírito positivo e motivar a malta… é que o cenário era negro. Tudo isto para também vos dizer que, idealmente, antes de ter saído de casa, deveria ter tomado outro pequeno-almoço. Aí sim, teria sido melhor. Mas eu não tinha noção… eu não tinha noção daquilo que me esperava….

A minha roupa do aconchego

Serve este ponto para vos dizer que, desde que deixámos a nossa mochila na chegada, ainda em Boston, só estávamos autorizados a levar para a partida o nosso pequeno-almoço assim como a roupa que tínhamos no corpo. Fomos todos muito agasalhados para não passarmos frio enquanto esperávamos pelo início da prova. Eu levei umas calças de fato de treino, duas camisolas térmicas, uma casaco bem quente e ainda o sensual corta-vento cor-de-rosa. So não levei cobertor porque a malta disse que eu era exagerada! Mas afinal quem é que sabe?… por vezes até são eles. Acabei por não levar. Toda esta roupa seria entregue, posteriormente, a Associações que necessitassem de roupa. Por essa razão, nunca estaria a deitar nada fora. Tudo seria aproveitado. Ah! Também levei um “tenuxo”… supostamente para não molhar os ténis da maratona até começar a prova. Na verdade, não adiantou muito… quando a prova teve início, eu já estava um pinguim. E bastou sair da tenda dos atletas. Uma coisa boa no meio de tudo isto: fiz o “serviço” três vezes. Limpinha para correr! Siga! Está na hora!

A partida

Não fomos todos aos mesmo tempo. Somos 30 mil atletas. Imaginem todos a arrancarem ao mesmo tempo? Não ia correr bem! Eu pertencia à WAVE2, Corral2! E fui sozinha! Fiquei tão triste! A pessoa é independente mas, neste tipo de situações, eu preciso sempre de partilhar, de sentir o companheirismo… a “cena” de “estamos todos juntos nisto”. Mas tudo bem… também são só 500 metros até à partida. E lá fui eu a “trote” que serviu logo de aquecimento. Quando cheguei, ainda não tinha aquecido. Estava gelada e, pior, não sentia os pés, já para não falar das mãos. E aqui esta a minha grande preocupação! Começar a correr já nestas condições e saber, garantidamente, que o mau tempo ia prolongar-se por toda a manhã, tirou-me todo o entusiasmo e só acrescentou algum medo e receio.

Durante os 5 minutos que estive parada à espera da “largada” pensei em tudo isto. Confesso que estava triste e até um pouco frágil. Mas também depois pensei… “E ENTÃO? Vais fazer o quê? Desistir nunca estará nos teus planos, portanto, vamos indo e vamos vendo. Não deixa de ser A INCRÍBEL Maratona de Boston. E se isto fosse fácil, tu não estarias aqui. Começa lá a contar a tua história e falamos do resto daqui a 3h… e 33 minutos”.

Durante

Hopkinton – Ashland – Framingham – Natick – Wellesley – Newton – Brookline – Boston

Foram estas as localidades por onde passei. Sempre em frente, mas a subir e a descer, principalmente entre o Km 25 e o Km 33 – aqui levas com 4 colinas duras que culminam com a “Heartbreak Hill”, com 600 metros de subida neste último Km. E interessa saber que, nesta fase, muitos dos atletas já estão cansados e por essa razão, aqui vi muita gente a “bater no muro”. Eu, inclusive. Mas acreditem – não tanto pelo percurso, mas principalmente pelo vento de frente, o sacana que nunca abrandou. Era uma dificuldade a dobrar. Nesta fase, recordo-me que dei a mão a duas mulheres que estavam claramente no seu limite. E tomei esta atitude porque gostava que fizessem o mesmo comigo. Correr é superação, é ir na bolina, mas também é uma jornada que, apesar de ires por ti, os “outros” também te movem e também te fazem correr…mesmo quando achas que não consegues. Não sei se terminaram, mas apesar do meu “empurrão”, acabaram por parar no Km33. 

Depois há coisas que não entendo, honestamente. A pessoa vai para ajudar, nomeadamente com águas e bebida energética, e uma delas por exemplo, daí a 30 segundos começa a acelerar… na subida! E lá passou por mim… ”Ela não está bem”, pensei! E não estava… acabei por passar novamente por ela… mas dei outro “empurrão”, a ver se ela se juntava a mim e, assim, se fôssemos juntas, sempre era mais fácil. “Tá beeeeimmmmm!!!!” Então não é que a moça tenta novamente arrancar na “bolina”? E assim foi…durante cerca de 10 segundos… A minha pergunta é: para quê? É que ainda faltavam 8 km… Ainda sorri para ela… e ela nem olhou para mim! Tentei!! Não posso correr pelos outros! Depende de nós querer ou não chegar ao fim! E eu queria taaaaanto! Sabia que, se passasse o Km 33, ia conseguir… nem que fosse “de gatas”.

Andei sempre nisto, infelizmente! Não a “curtir” a prova – o percurso, o apoio, a música (se bem que até essa parte ficou aquém, pelo mau tempo) – mas a pensar na melhor forma de sobreviver com alguma qualidade, a esta Maratona! Tive muito frio e nem me atrevi a tirar o buff e o gorro (só mesmo nos últimos dois quilómetros porque sabia que, garantidamente, alguém ia tirar uma grande “chapa” e aí sim, eu queria estar linda e maravilhosa… é nisto que a pessoa pensa, também), muito menos as luvas. Pensava apenas no momento e não na meta porque isso, claramente, ia gerar ansiedade. Pensava por etapas:

  • Só quero chegar à Meia…
  • Agora vou até aos 25… vou tentar ultrapassar as colinas
  • Se passar o 33, ja fiz o mais díficil
  • Agora não posso desistir
  • Calma que está quase, mas não fiques ansiosa…ainda te faltam 2 quilómetros

NOTA: Aqui gosto sempre de pensar de outra forma – “vá… ainda tens 2 quilómetros para curtir. Lembra-te que já fizeste séries de 2000m. É só mais uma série” – Pessoal! Ajuda imenso. Experimentem este pensamento! Sorriso nessa hora, Isabel! Olha ali a medalha a olhar para ti! És IncríBel!!

Chegada

Isso mesmo! É tão importante chegar com atitude e elogiarmos a nossa performance!! Não é à toa que, para os americanos, quem corre maratonas é um HERÓI! E aqui não interessa o ritmo, o tempo, a performance. Interessa ter a vontade e a coragem de correr 42.195m e conseguir! E chegar ao fim e colocar a medalha ao peito! Quem corre uma Maratona é, claramente, alguém com espírito de sacrifício, com foco, com determinação, com objetivos, com raça e com vontade de viver a vida fora da zona da conforto… porque é aí, como já disse várias vezes, que a vida começa.

É como fazer um treino de séries – só evoluis numa prova, só fazes um split negativo e terminas com power, se treinares picos de velocidade, se estimulares o teu corpo e o obrigares a sair da zona de conforto. Se o fizeres várias vezes, ele depois habitua-se a correr mais rápido, de forma natural. E depois é brutal perceber que o teu ritmo confortável é, se calhar,  o teu melhor ritmo nos últimos quilómetros de um treino progressivo. Entendem? É assim que a minha cabeça pensa! Por isso dou tanto valor aos treinos de preparação. A verdade é esta! Eu achei tudo tão difícil que, no Km 15, lembro-me perfeitamente deste pensamento – “Meu Deus, eu sou forte, e vou dar tudo, mas ajuda-me a ter forças para chegar ao fim”. Cheguei sem reservas. Cheguei e chorei. Mas cheguei a sentir-me uma grande mulher! Olhem só eu aqui com a medalha – de sorriso congelado, honesto, feliz e rasgado?!

 

Fui andando… andando… à procura da minha mochila. Estava numa tenda bem lá ao fundo…mas eu não via lá muito bem. Estava a chover descontroladamente e o vento teimava em fintar-me. Estava a ficar irritada com ele, confesso. Porém continuei… Tive de esperar pela minha mochila – parada. Parada, a arrefecer. Parada, a tremer. Parada e a entrar em pânico com o frio que se tornava implacável. Não chegou o abraço do tal senhor. Lá fui eu para os cuidados médicos. Sentaram-me numa cadeira de rodas e, durante 200 metros, sentia-me na bolina! A cadeira de rodas andava bem… e o carinho e preocupação dos médicos também ajudaram. 

Eu lembro-me que só chorava!! E chorava e chorava!!

O frio estava a magoar-me, é certo… e a vontade de fazer o numero 1 também. Mas também estava a chorar de orgulho! E percebi isso porque senti que nunca na vida me agarrei tanto a uma medalha como naquele exato momento – estava na minha mão esquerda, junto ao meu peito – protegida para não entrar em hipotermia. Antes eu do que ela!!! O que seria perder a minha medalha! É MINHA E SÓ MINHA!!! Tem o melhor de mim! Entendem agora o meu sentimento? Claro que eu fiquei super feliz pela conquista… mas não havia necessidade… bastava não estar tanto frio. Se tivessem 2 graus já era bom!

Já levei com o batismo e continuo a  querer correr Maratonas para o resto da minha vida… mas agora sinto que preciso de uma curta pausa!!! Depois disto, eu agora já só quero correr sem relógio, a sentir o sol a bater e o calor a querer ficar. Anda Verão!!! Estou aqui, de braços abertos, para te receber!!  

Malta!! Quanto ao resto, está tudo nas minhas stories, em grande destaque no meu Instagram!! Aí sim, podem espreitar o meu pós-treino. Fiz tudo aquilo que mais estimo:

  • COMER com toda a vontade do MUNDO
  • Partilhar a minha aventura e escutar a dos meus colegas de corrida. 

E estes dois pontos, depois dos 42.195m são também as razões pelas quais eu quero sempre correr as longas distâncias. A fome é sempre de leão, e a partilha é a mais emotiva de todas! 

Ainda vivo a maratona! Ainda choro a maratona! Sou muito mais forte hoje, do que antes do dia 16 de Abril.