Temos todos cada vez mais a noção do super-poder que é dormir bem, com impacto na nossa saúde física e mental, tal como comer bem ou treinar. Sempre que pensamos em melhorar o nosso sono lembramo-nos logo da quantidade de horas de sono (tantas vezes insuficiente) e das medidas de boa higiene do sono, como o jantar mais leve, sem café e o quarto escuro, sem ruído e confortável. Mas não estaremos a esquecer-nos de qualquer coisa?
Raramente nos lembramos do nosso ritmo circadiano. Damos por ele quando saímos de Lisboa às 23h00 e chegamos a São Francisco às 5h00. Saímos do nosso país já com sono e preparados para dormir, no avião vamos vendo filmes para passar o tempo e no local de chegada o dia está só a começar (e nós de rastos) e vamos receber toda aquela luz matinal. Este desalinhamento pode mesmo gerar sintomas gastrointestinais, além de sonolência durante o dia ou dificuldades em adormecer à noite (o chamado jet-lag).
Isto acontece porque todos nós temos um relógio biológico – o ritmo circadiano -, marcado essencialmente pelo hipotálamo. O nosso ritmo é discretamente superior a 24h e isso torna ainda mais importante estarmos sincronizados com o relógio cronológico externo (de 24 horas) do local onde estamos.
Existem pistas importantes para o alinhamento entre estes dois relógios. A luz é dos sincronizadores mais importantes. A exposição à luz de manhã prepara-nos para estarmos mais acordados e ativos. A ausência de luz prepara o sono e deixa-nos mais aptos a dormirmos. É por isso que evitarmos a exposição à luz indoor ao final do dia e os dispositivos eletrónicos é benéfico para a qualidade do nosso sono.
Entre as pessoas mais suscetíveis a distúrbios deste ritmo circadiano, ou seja, desalinhamento entre o nosso relógio biológico e o relógio cronológico (externo), estão os invisuais e os idosos institucionalizados, precisamente pela ausente ou reduzida exposição à luz que vai dificultar esse alinhamento.
Também o exercício físico durante o dia ou as refeições regulares são bons sincronizadores para o nosso ciclo sono-vigília.
TEMOS TODOS O MESMO RELÓGIO?
Daqui escreve-vos uma cotovia. Sempre acordei cedo com facilidade e fui mais produtiva pela manhã. Estudar à noite sempre foi particularmente complicado. Os cronotipos são estas variações individuais na preferência pela manhã (cotovias) ou pela noite (corujas). Num mundo ideal estas preferências fariam parte do nosso currículo e permitiriam-nos ajustar o nosso trabalho ao nosso relógio interno.
Estarmos bem alinhados com o relógio externo permite-nos um sono de qualidade com todos os benefícios do mesmo para a nossa saúde e o nosso bem-estar.
ENTÃO E QUANDO O RELÓGIO EXTERNO MUDA?
A prática da mudança bianual de hora terá começado em 1784 com o objetivo de diminuir o consumo de velas através de um maior aproveitamento da luz solar. No nosso país, desde 1916 que o relógio muda duas vezes no ano. Ou seja, além de todos os desafios que a sociedade atual cria para o nosso sono em quantidade e qualidade, ainda temos mais este de dois ajustes no ano.
Os motivos para a manutenção da mudança são essencialmente económicos, com a perspetiva de o horário de Verão fomentar o aumento de atividades lúdicas, prática desportiva, comércio e atividade de restauração pela presença de luz mais tardia.
No entanto, do ponto de vista da saúde, este ajuste bianual da hora é desfavorável para o nosso sono. Além disso, há robusta evidência científica de que o horário mais saudável para o nosso sono é o chamado “horário de Inverno” – temos a luz do sol pela manhã para nos sincronizar o nosso ritmo circadiano com o relógio externo e a luz do dia termina mais cedo, permitindo que o nosso corpo e o nosso cérebro percebam que está na hora de baixar os níveis de atividade e preparar o sono. A maioria das sociedades científicas aconselha o término desta mudança bianual de horário e a manutenção do horário standard (o “horário de Inverno”).
MAS ENTÃO O QUE PODEMOS ESPERAR DESTA MUDANÇA DE HORA QUE SE AVIZINHA?
No imediato, vão roubar-nos uma hora de sono. Pode parecer pouco, mas não é. Porque se, por um lado, dormir é um bem gratuito e essencial, na sociedade atual parece cada vez mais um luxo de alguns. Sempre que precisamos de mais horas do que aquelas que o dia tem, é no tempo de sono que a sociedade habitualmente corta. Este dia de 23h que acontece na Primavera só será bom para quem está escalado para trabalhar nessa noite e que, assim, trabalha menos uma hora. Para a maioria das pessoas, vai potenciar o agravamento de um estado prévio de privação do sono.
Depois, como se não bastasse, esta mudança de horário traz com ela a promessa de seis meses sem a essencial luz matinal – o despertar é mais difícil, saímos de casa e ainda está escuro. E se, por outro lado, o horário de Verão parece ser generoso no sol até mais tarde que é um chamamento para eventos e encontros ao final do dia… a fatura a pagar torna-se cara e reflete-se na saúde física e mental.
Como cotovia vou sentir menos esta mudança. Mas as corujas que se preparem – vai ser mais difícil adormecer à noite, o sono pode ser mais interrompido por despertares e de pior qualidade e também o despertar pela manhã será mais difícil. E estes sintomas podem persistir vários dias depois da mudança. A luz tardia vai inibir a produção de melatonina e atrasar o início de sono e agravar a qualidade do mesmo. Também os adolescentes sofrem particularmente com esta transição pelo seu cronotipo biologicamente mais tardio.
Quem estiver mais privado de sono também vai estar menos preparado para a mudança.
Por fim, quem tem doenças de sono não tratadas (como a apneia do sono) vai ter maiores riscos nesta transição de horário.
COMO POSSO SOBREVIVER A ESTA MUDANÇA?
Levar uma boa bagagem de sono é essencial – assegurar as 7 a 9 horas de sono no adulto (8 a 10 nos adolescentes) permite uma transição menos difícil. Usar e abusar das pistas para o nosso sono – conseguir uma boa exposição à luz solar pela manhã, praticar exercício físico pela manhã ou à hora de almoço e manter horários regulares para as principais refeições. Ao final do dia ser particularmente cuidadoso com a higiene do sono – jantar ligeiro, sem álcool e sem bebidas energéticas, evitar dispositivos electrónicos e assegurar um quarto sem ruído, confortável e escuro.
Quem sofre particularmente com a sonolência da privação do sono e não tem qualquer dificuldade em adormecer, pode fazer pequenas sestas de 20 minutos pós-prandiais para tentar adaptar-se nesta fase.
E, por fim, é tempo de se decidir a marcar Consulta de Sono se sente que dorme mal, o sono não é reparador, ressona (não é normal ressonar!), pára de respirar durante o sono, acorda irritado ou sonolento e tem dificuldades de atenção ou concentração ao longo do dia. Um mau sono impacta negativamente a forma como nos sentirmos, como treinamos, como comemos e como nos relacionamos com os outros. 2025 é o ano de pôr o sono na agenda, dando-lhe oportunidade, e cuidando dele, como quem de um bem precioso está a cuidar.
Vânia Caldeira

Vânia Caldeira
Médica pneumologista na CUF, SleepLab e Clínica Hugo Madeira.
Competência em Medicina do Sono pela Ordem dos Médicos e Somnologist pela European Sleep Research Society.
Coordenadora da Comissão de Trabalho de Patologia Respiratória do Sono da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.