No interior de Portugal, o verão traz consigo um medo constante: o fogo. Mas mais do que árvores e paisagens, o que arde são vidas, memórias, raízes e o futuro de comunidades inteiras. A mentora DoBem, Dulce Costa, partilha neste testemunho, o seu olhar profundo e vivido sobre o que significa estar no centro desta realidade.

Vinho do Dão, Azeite de Trás-os-Montes, Queijo da Serra, Cerejas do Fundão, Castanhas da Terra Fria, Amêndoas de Foz-Côa, Carne Barrosã, Cabrito Transmontano, Maçã Bravo de Esmolfe, Mel da Serra da Lousã…  A lista, incompleta, de produtos de qualidade superior que acabei de escrever são das terras do interior de Portugal que foram e estão a ser consumidas pelas chamas.

Talvez não conheças os locais onde eles são cultivados, e muito menos o rosto, o trabalho e o sacrifício de quem ama e trabalha diariamente a terra, em circunstâncias difíceis, para que tu só tenhas de ir ao supermercado e trazer para casa estes produtos.

Talvez nunca tenhas manchado as mãos de negro ao tirar a primeira casca das nozes, nunca tenhas aberto um ouriço para apanhar as castanhas, nunca tenhas varejado oliveiras e dobrado as costas para apanhar azeitonas. Talvez não conheças o cheiro do estrume nem nunca tenhas visto um bezerro nascer.

Possivelmente só conheças o sabor destes produtos de excelência, e as palavras Transmontano, Beirão, Serrano não te transportem para paisagens de beleza indescritível e pessoas generosas. É uma pena, porque só é possível amar o que conhecemos intimamente.

Quando as televisões noticiam que no interior de Portugal está a arder mato, não é mato que arde, mas a vida destas pessoas. São ecossistemas inteiros que desaparecem, milhões de vidas que são ceifadas ao ritmo alucinante com que o fogo avança.

Nas notícias, vês as chamas que queimam sem piedade as florestas e se aproximam vorazes das habitações destas pessoas. Até desligas a televisão para não ficares incomodado e poderes dormir descansado (não te critico por isso, porque já fiz o mesmo). Não ouves os gritos de desespero, não sentes o fogo que lhes queima a alma juntamente com as hortas, os soutos, os olivais, as vinhas, os animais e toda a paisagem.

Acredito que te sintas consternado e agradeço toda a solidariedade que se gera quando os incêndios nos atingem. Mas não chega.

Nestas alturas todas as pessoas querem dar uma opinião, apontar culpados oferecer ajudas. E o resto do ano? Quem é que vai viver no meio do negro e das cinzas? Quem é que vai olhar a paisagem desolada, onde os animais não têm abrigo nem alimento?

Estamos fartos de planos que nunca são implementados. Fartos de que se apontem culpados quando ninguém assume as consequências reais, nas vidas das pessoas, dos incêndios massivos que atingem o interior. 

Estamos fartos, mas não mortos. Amanhã, estas pessoas vão voltar a plantar árvores das quais, possivelmente, nunca vão provar frutos. Os teus filhos, talvez venham a comer as Castanhas da Terra Fria, as Amêndoas de Foz-Côa, as Cerejas do Fundão…. Haja coragem e capacidade (escrevo esta palavra com tristeza, a pensar nos agricultores que, na sua maioria, tem mais de 60 anos).

Antes de terminar, queria dizer-te que vim viver para o interior de Portugal há três anos, para uma aldeia em Oliveira do Hospital. Em 2017 Oliveira do Hospital foi atingida pelos incêndios que queimaram mais de 85% do Concelho, incluindo empresas, escolas, habitações e onde se perderam, também, vidas humanas. A casa antiga que comprei e recuperei tinha marcas desses fogos. Foram as pessoas da aldeia que salvaram as casas, porque os bombeiros não conseguiram chegar atempadamente. A resiliência e capacidade de recomeçar destas pessoas tem um valor tão elevado que talvez poucas pessoas atinjam.

O ano passado as chamas voltaram a rondar a aldeia e percebi, nessa altura, como é que uma Comunidade funciona: não há bem particular, há bem comum. Todos se articulam de forma a vigiar a aproximação do fogo, a apoiar quem está com medo, a proteger quem não se poderá defender caso o fogo aqui chegue. Ouvi várias vezes uma vizinha a dizer-me para não ter medo, sem saber de onde lhe vinha a calma. “O fogo ainda está longe”, dizia, quando sabia que não estava e que bastava um pouco mais de vento para ele chegar rapidamente à aldeia.

Vivemos o verão nesta ansiedade, de não saber quando o fogo nos bate à porta, porque sabemos que um dia ele virá, só não sabemos quando, a intensidade com que vem e se teremos capacidade de o travar antes que ele nos leve em segundos o que contruímos ao longo de anos. 

Não merecemos isto, não merecemos que nos virem as costas e que só se lembrem de nós quando compram cerejas, castanhas, queijo, mel…

Um amigo meu partilhou uma vez comigo a inveja que sentia das pessoas que nas férias ou fins-de-semana prolongados saíam de Lisboa para “ir para a terra”. Ele dizia com pena: “eu não tenho terra”. É com o coração apertado que escrevo isto, porque sinto que essa “terra”, aquele local onde regressamos para nos voltarmos a ligar às origens, está a desaparecer.

Gostava que pudesses amar o interior tanto quanto eu o amo. Quando o interior arde perdem-se as tuas memórias, a tua herança, a tua raiz. E um povo sem memórias, herança e raiz não tem futuro nem dará fruto.