“O lugar mais importante da Terra é o mar.”
Foi David Attenborough que o disse — e é difícil discordar.
Mais de metade do oxigénio que respiras vem do oceano.
É ele que absorve 25% do CO₂ que emitimos, regula a temperatura do planeta, sustenta ecossistemas e alimenta milhões de pessoas.
E, mesmo assim, esquecemo-nos dele.
Esquecemo-nos que também a nossa saúde mental, emocional e espiritual está ligada ao mar.
No seguimento do Dia Mundial dos Oceanos, convidámos a bióloga e investigadora Ana Catarina Queiroga a escrever esta crónica.
Porque mais do que celebrar, queremos agir. Porque cuidar dos oceanos é cuidar de nós.
E talvez esteja na hora de nos perguntarmos o que temos feito por ele.
É com um profundo sentido de responsabilidade e ligação pessoal que escrevo estas palavras. Quando penso no mar, volto inevitavelmente à infância. Nasci em 1982 e, embora as praias de então já não fossem paraísos intocados, não tenho memória do plástico dominar a paisagem como hoje.

As férias de verão com os meus avós maternos, no Norte de Portugal, e com os meus pais, nas costas mediterrâneas de Espanha, eram sinónimo de dias infinitos à beira-mar.
O ex-libris dessas férias era sempre a praia – um palco de descobertas, onde as poças de maré e as suas pequenas criaturas marinhas se tornavam os meus tesouros.
Inspirada pelas viagens e explorações dos grandes Jacques Cousteau e David Attenborough, observava caranguejos tímidos, peixinhos curiosos, anémonas hipnotizantes e lesmas do mar alienígenas, com o olhar curioso de quem ainda não sabia que um dia viria a estudar biologia. Apanhava mini camarões frenéticos e estrelas-do-mar vibrantes, que colocava num balde com água salgada junto com búzios e caramujos que, entretanto, faziam as suas investidas incessantes até ao topo.
Os lanches e almoços na praia eram passados a observar o balde, garantindo que nenhum caramujo escapava ou a jogar jogos com a minha avó Mirita usando conchas e pedrinhas. No final do dia, antes de regressar a casa, o conteúdo era sempre devolvido à sua casa aquática com o mesmo cuidado com que os tinha recolhido. Lembro-me bem de como a areia era desenhada por linhas infinitas de conchas, de muitas cores, tamanhos e feitos, desde os abundantes mexilhões aos raros “beijinhos” – não de lixo.
O MAR MUDOU – E A MUDANÇA PREOCUPA
Com o passar dos anos, as paisagens mudaram. Aquele tapete de conchas coloridas foi lentamente substituído por uma visão desoladora. Aquilo que antes era um exercício de “beach combing” em busca da concha mais bonita, transformou-se num encontro quase certo com resíduos de plástico: beatas de cigarro, garrafas, cotonetes, pedaços de brinquedos esquecidos, fragmentos de redes e artes de pesca.
A paisagem que antes era um hino à natureza, agora exibia as cicatrizes da nossa presença, e, infelizmente, também da nossa ausência, quando falta o cuidado.



PLÁSTICO: O NOVO HABITANTE DOS OCEANOS
O declínio do ecossistema oceânico é uma realidade inegável. Os corais, que antes eram vibrantes jardins subaquáticos, branqueiam. A vida marinha diminui em quantidade e diversidade, e as águas, outrora límpidas, revelam uma crescente carga de poluição.
A poluição por plásticos está a sufocar o nosso planeta. Já nem os vastos oceanos diluem o problema. Os plásticos estão por todo o lado e, se os macroplásticos põem em perigo a vida marinha de forma visível e imediata, a sua decomposição em fragmentos cada vez mais pequenos não reduz o seu impacto – antes o multiplica.
Os microplásticos infiltram-se em todos os cantos do mundo: do alto das montanhas ao fundo dos oceanos, do cérebro humano ao leite materno. A contaminação é transversal, silenciosa, persistente.
Nas minhas viagens mais recentes, em trabalho, cheguei a ilhas remotas do Atlântico como a Geórgia do Sul, Tristão da Cunha e Ilha Inacessível, e, mesmo lá, a corrente não nos poupa o espetáculo do lixo marinho trazido de longe pelas correntes que não conhecem fronteiras. É um soco no estômago ver que nem os recantos mais isolados do nosso planeta escapam à nossa pegada.
CADA GESTO CONTA: DO DESÂNIMO À AÇÃO CONCRETA
A mágoa é grande, mas maior ainda é a vontade de agir. Sei que as pessoas podem sentir-se impotentes e achar que, por mais que se esforcem, não fará diferença. Mas faz e eu não consigo ficar indiferente, nem por mim nem pelas futuras gerações. Não conseguiria encarar o meu filho ou neto se me confrontassem com o facto de eu saber… e não ter feito nada.
Acho que o mundo não vai melhorar – pelo menos, não sem antes piorar – mas também acho que de nada serve esfregar as mãos e assobiar para o lado.





Este não é um lamento sem esperança. Pelo contrário! Acredito, com toda a minha paixão pela biologia, que temos o poder de reverter este declínio e catalisar novas oportunidades para o desenvolvimento e a recuperação dos ecossistemas marinhos.
Precisamos dos oceanos saudáveis para estarmos saudáveis – esta é uma verdade fundamental que não podemos ignorar. Os oceanos regulam o nosso clima, fornecem oxigénio, alimentam milhões de pessoas e abrigam uma biodiversidade que mal começámos a compreender.
NAVEGAR POR UM FUTURO MELHOR
Há ações que fazem diferença. Embora não resolvam o problema por completo, a remoção de macro lixo nas orlas costeiras e ribeirinhas é uma ação positiva. Segundo um estudo norueguês, limpezas de praia regulares podem reduzir significativamente a presença de microplásticos nos sedimentos.
E mesmo que não te juntes a uma dessas plataformas de voluntariado ambiental – que são, aliás, uma excelente oportunidade para causar impacto positivo – basta recolheres três pedaços de lixo sempre que saíres da praia, de um rio ou de qualquer ambiente aquático. Já estarás a fazer diferença.
É com este espírito de ação e um coração cheio de esperança que, em janeiro do próximo ano, vou juntar-me,com a minha família, ao projeto Sail and Clean. Teremos o privilégio de navegar pelo mar das Caraíbas, para recolher lixo marinho e sensibilizar comunidades costeiras, contribuindo ativamente para a limpeza destas águas preciosas. É um pequeno passo, sim, mas acredito que cada passo, por mais ínfimo que pareça, constrói um caminho. Cada gesto conta. Cada ação, por pequena que pareça, pode ser catalisadora de novas oportunidades para o oceano recuperar o seu equilíbrio.



A NOSSA SAÚDE DEPENDE DA SAÚDE DOS OCEANOS
O oceano tem-nos sustentado e cuidado ao longo de toda a nossa existência. “Sustaining what sustains us” não é apenas uma frase bonita – é uma necessidade vital. Precisamos de oceanos saudáveis para estarmos saudáveis.
Os chamados ecossistemas de “carbono azul” – como os mangais, pradarias marinhas e as florestas de algas junto à costa – têm uma capacidade de captura de carbono por área até dez vezes superior à das florestas terrestres. Proteger estes habitats é proteger o clima, a biodiversidade e o futuro.
O oceano dá-nos oxigénio, alimento, regulação climática – e memórias. Muitas memórias. Agora, cabe-nos a nós retribuir.
O FUTURO AINDA ESTÁ NAS NOSSAS MÃOS
Por isso, mais do que nunca, precisamos de dar um passo em frente pelos oceanos. Faltam cinco anos para terminar a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável. É tempo de unirmos esforços e termos uma ambição internacional real para os oceanos.
Esta não é uma causa isolada – é global, urgente e profundamente humana.
O Dia Mundial dos Oceanos é mais do que uma celebração; é um alerta, um convite à reflexão e, acima de tudo, um apelo à ação. Que as nossas crianças possam um dia desfrutar das praias e dos oceanos tal como eu desfrutei na minha infância, encontrando conchas coloridas em vez de plástico e maravilhas marinhas em vez de detritos.
O futuro dos nossos oceanos está nas nossas mãos. Vamos cuidar deles?

Ana Catarina Queiroga é microbióloga e doutorada em Biologia. Investiga a relação entre saúde pública e mudanças costeiras no Instituto de Saúde Pública e no CiBio/InBio da Universidade do Porto, e colabora com a OMS Europa na prevenção de afogamento. Mais do que títulos, carrega uma ligação profunda ao mar — onde ciência, consciência e paixão se encontram.