Acreditamos que o desporto é muito mais do que competição. É educação, autoconhecimento e caminho de vida. Por isso convidámos Adalberto Chantre, judoca, pai de dois filhos, técnico de exercício físico, treinador e vice-presidente da Associação de Judo de Lisboa, para escrever esta crónica.


Com uma vida dedicada ao judo — primeiro como atleta, depois como treinador e mentor de crianças — este professor fala-nos da importância de respeitar o temperamento único de cada criança e de como o desporto pode transformar vidas, moldando autoestima, resiliência e confiança.


Antes de conhecer o judo, sempre fui fascinado pelo desporto — especialmente pelas habilidades marciais e a sua filosofia de vida. A capacidade de controlo físico e técnico dos praticantes despertava em mim muitas curiosidades. Esse estímulo na infância levou-me a experimentar outras artes marciais antes de enveredar totalmente nesta arte que hoje me completa.

Conheci o judo aos 23 anos, por acaso, através do convite de um desconhecido enquanto fazia o meu treino físico no ginásio. Esse desconhecido era o judoca João Rodrigues, na altura atleta do SAD, e que hoje é um dos fundadores da escola de judo Bowgym. De desconhecido, tornou-se um grande amigo, com quem ainda treino e troco ideias sobre técnicas e métodos pedagógicos na formação de judocas. Estou muito grato por esse convite inesperado, que mudou completamente a minha vida.

O judo transformou-me. Permitiu-me educar a minha emoção e mestrear a minha autoestima, conhecer os meus mestres Rui Domingues, Pedro Cristóvão e colegas de treino que para além de judocas, são pessoas de valores que partilharam conhecimento, tempo, filosofia e energia comigo durante muitos anos. Com o avançar dos treinos, estágios e competições, fui percebendo que a minha personalidade se fortificava treino após treino, desafio após desafio, esforço após esforço, frustração após frustração, superação após superação, era um diálogo com a própria imperfeição.

Acredito que o valor duradouro na prática de uma arte marcial reside em esta servir de veículo para nos exprimirmos, e através dessa expressão, chegamos a compreendermo-nos melhor espiritualmente falando, através de um conhecimento progressivamente envolvente, tanto das nossas limitações como das nossas capacidades. No meu caso, sem dúvida, foi um percurso natural com dedicação, sem planeamento, mas profundamente transformador.

Depois da fase competitiva, resolvi focar-me na formação dos mais jovens. Primeiro, tirei o curso de treinador. Depois, para ampliar o meu conhecimento e as oportunidades no desporto, licenciei-me em Educação Física e Desporto no ISCE. Desde então, dedico-me ao escalão de formação. Sinto-me privilegiado por fazer todos os dias o que me preenche. 

Mais do que ensinar técnica: construir vidas

Ser professor é mais do que ensinar judo. É construir uma vida, transformar pessoas e ajudar cada criança a descobrir os seus dons, receios e dificuldades — físicas, sociais e emocionais. É ajudá-la a encontrar o seu valor e autenticidade.

Passo a passo, é possível construir resiliência e consistência, criando o hábito da melhoria contínua. O caminho da vida marcial é esse: “Hoje melhor que ontem, amanhã melhor que hoje.” Ensino este conceito para que as crianças o apliquem em todas as áreas da sua vida.

O desporto molda a mentalidade, mas vai muito além do físico. Cada movimento, respiração e esforço contribuem para transformações no cérebro infantil. Estimula o raciocínio, a tomada de decisões, melhora a comunicação entre os hemisférios cerebrais e produz hormonas de bem-estar. A criança que passa por este processo desenvolve resiliência perante o insucesso, autoconfiança nos desafios, coragem para enfrentar o medo de falhar e uma força tranquila intrínseca.

O impacto do treinador

Uma ligação forte e segura com um adulto atencioso pode ter um papel protetor, ajudando a criança a enfrentar as pressões do dia a dia. As interações e ambientes ricos — locomotores, emocionais e intelectuais — desenvolvem capacidades de raciocínio e de vida.

Não basta colocar um filho no desporto, é preciso saber quem está a impactar essa criança. O ambiente deve ser seguro e positivo, com valores claros e respeito pelo desenvolvimento saudável, mais do que apenas o foco na vitória.

Primo em estar atento as dificuldades que a criança ou atleta revela, e conforme o escalão etário, procuro estratégias lúdicas e pedagógicas que permitam progressivamente elevar a taxa de sucesso sobre a dificuldade dele, sempre acompanhado pela informação de retorno. A taxa de sucesso faz aumentar a confiança da criança na tarefa a executar. desenvolve conforto e afeto pela modalidade, pelo grupo de trabalho e pelo educador.

Recordo-me que num colégio onde lecionava judo, um aluno de 3 anos de idade que tinha receio de se envolver em atividades e revelava muito pouca independência sobre o adulto, chorava imenso sempre que ia experimentar algo de novo… certo dia, ele foi experimentar o judo, e a abordagem inicial  foi proporcionar conforto em ambiente de aula. Mas, mesmo assim, o menino não parava de chorar e recusava-se a participar… então, acordei com as educadoras que durante 2 semanas ele iria apenas assistir às aulas e que a meio das aulas o iria convidar a participar. Nas duas aulas que assistiu, chorou e não quis participar, mas aos poucos choro foi substituído pelo silêncio, observação e pequenos sorrisos disfarçados. Na terceira aula, ele não chorou – revelava atenção sobre a dinâmica que estava aos seus olhos e, por vezes, sorria ao ver os colegas a divertirem-se. Aos poucos revelava mais confiança e conforto no ambiente do judo. Na quarta aula, o pequeno judoca já trocava algumas palavrinhas comigo, professor, e já não foi preciso fazer o convite: ele entrou no tatami sozinho, um pouco desconfiado, mas fez a aula toda. Ainda hoje esta criança pratica judo.  A confiança nasce do acolhimento, da escuta atenta e da oportunidade de socialização gradual sem forçar interações.

O impacto do treinador na vida de um atleta é profundo e vai muito além da performance desportiva, atua como um pedagogo e mentor, transmitindo valores, construindo um ambiente positivo e motivador, e ajudando o atleta a desenvolver resiliência, disciplina e um sentido de propósito, moldando-o para o sucesso tanto no desporto como na vida.

Adaptar o desporto ao temperamento de cada criança

Um bom ou mau temperamento está ligado à mestria das emoções, e a criança ainda não tem experiências suficientes para as aprimorar. As atividades físicas são o único exercício que utiliza de forma integrada os hemisférios direito e esquerdo do cérebro das crianças, provocam sentimentos positivos e felizes que originam da libertação de determinadas endorfinas que ajudam no desenvolvendo hábitos comportamentais, disciplina e responsabilidade.

Tudo se treina — mas é crucial saber que tipo de criança temos à frente, que competências precisa de trabalhar e como ajudá-la a evoluir social, emocional, intelectual e fisicamente.

As crianças são únicas, pois estão em constante desenvolvimento cognitivo, emocional e social. A verdadeira educação acontece quando respeitamos a diversidade e suas singularidades, pois cada uma tem a sua forma diferente de sentir o mundo, e com calma, escuta ativa e paciência, os caminhos se abrem para que revele e expresse a sua maneira de ser.

Nas aulas, lido com uma avalanche de personalidades, desde a criança mais atenta ao mais distraído, da mais brincalhona a mais reservada, do mais criativo ao mais desconfiado, crianças tímidas, cinestésicas, introvertidas, hiperativas, impulsivas, entre outras. E todas têm um uma característica em comum, são crianças e gostam de brincar. As crianças adoram brincar mesmo sendo inato, elas devem ser incentivadas a fazê-lo, pois é imprescindível para o seu desenvolvimento. 

A motricidade grossa, a motricidade fina, o raciocínio lógico, tudo é aprendido a brincar, e quando brincam, fazem atividade física, confronta-se com o risco e com imprevisibilidade, exercitam a autorregulação emocional e as competências sociais, desenvolvem capacidades cognitivas, testam os seus limites e aprendem a errar e a resolver problemas. 

Eu, como professor, sou muito participativo nas aulas, recuo no tempo e entro no mundo delas, procuro conhecê-las, saber e perceber do que gostam – tento estabelecer uma relação afetiva com elas. Durante esse processo crio ambientes que promovam o movimento, a exploração e o desafio, respeitando sempre o ritmo da criança e incluindo sempre uma forte componente lúdica. E esta é a estratégia que utilizo para que ela se expresse e me dê indicadores de que competências precisa aprender, desenvolver ou melhorar.

Criatividade e estratégias lúdicas e pedagógicas é a ferramenta que levam a criança a cooperar, integrar-se e expressar-se no ambiente que a rodeia, geralmente a criança que sente que foi vista, joga melhor, aprende melhor, aprende a confiar, respeita-se a si mesmo e os outros, claramente vive melhor. Isso só acontece se realmente o professor estiver presente integralmente na aula, predisposto a conhecer e deixar-se conhecer. 

Ajustar expectativas e evitar comparações

Há um mundo a ser descoberto dentro de cada criança. As crianças são perfeitas como são, elas precisam de ter infância, inventar, correr riscos, dececionar-se, brincar, encantar-se com a vida. O adulto tem de proporcionar segurança, ousadia e alegria.

Comparações existirão sempre, mas o foco deve ser ensinar valores e autenticidade. É isso que fará a criança crescer como indivíduo único — e é essa, para mim, a verdadeira missão do desporto.

Comecemos pelo o exemplo, a forma como os adultos mais próximos se relacionam com a criança define a forma com ela se relaciona consigo mesmo. Aquilo que transmitimos com a linguagem verbal e não verbal, será aquilo que ela irá replicar com quem se relaciona e transmitirá a si própria no futuro. Devemos ter muito cuidado com o que se semeia na emoção e autoestima da criança.

Deste modo, devemos encarar que educar é uma grande responsabilidade que temos em mãos. Acredito firmemente que o papel da educação tem como objetivo educar a emoção, desenvolvimento da solidariedade, da tolerância, da segurança, da capacidade de gerir os pensamentos nos momentos de tensão, da habilidade de trabalhar perdas e frustrações e principalmente a educação da autoestima. 

Ouso dizer que sem uma autoestima saudável é muito desafiante desenvolver as outras competências e qualidades de uma forma saudável. Para a criança poder desenvolver empatia necessita de autoestima, para poder ser respeitadora precisa de autoestima, para poder ser feliz precisa de autoestima, no fundo uma autoestima saudável funciona como um sistema humanitário social. Uma pessoa com uma autoestima saudável sente-se bem tal como ela é, com as suas qualidades e defeitos. Sente-se bem quando as coisas correm bem e sabe lidar com as situações que correm menos bem. Sente-se bem quando as pessoas a tratam bem e sabe lidar com as situações em que alguém a trata menos bem. Têm coragem para experimentar coisas novas e para dar a sua opinião e não sente receio de se expor ao erro. Quando falo de autoestima estou a referir-me ao que é, ao que sabemos sobre nós mesmos e como nos relacionamos com isso. A autoestima engloba autoconhecimento sobre as nossas capacidades, os nossos pensamentos, as nossas necessidades, os nossos desejos, as nossas forças e as nossas fraquezas.

Tudo o que queremos manter e tudo o que gostaríamos de mudar. O nosso nível de autoestima é determinado pela forma como gerimos todos estes aspetos internos. Quanto mais conseguimos aceitar que somos como somos, e que temos valor só pela nossa existência, mais saudável será a nossa autoestima. E é desta forma que acredito que podemos ajudar as crianças a descobrirem o seu verdadeiro valor e autenticidade, olhando para o lado, respeitando o próximo sem comparações.

Recordo-me de um episódio numa aula de judo, no decorrer do jogo por equipas, em que o objetivo era retirar um pedaço de cinto das costas do adversário. Quem conseguisse esse feito, ganhava um ponto para a sua equipa. 

Na turma tinha dois Gustavos, um revelava muita competitividade, elevada destreza e autoconfiança, o outro revelava alguma competitividade e subestimava-se precisamente porque tinha presenciado vitórias do adversário em outros desafios e queria ser da sua equipa para evitar o confronto com ele. Os dois estiveram frente a frente no desafio e a primeira coisa que o Gustavo que se subestimava disse foi:  já perdemos, ele ganha sempre! 

Perante este sinal de baixa autoestima e desvalorização, entrevi e disse: a coisa mais fácil que existe é a desistência… se desistires antes de começares, como é que sabes que és capaz de vencer?…  Não faz mal perder, temos é que aceitar o desafio e tentar superá-lo dentro das regras do jogo. Esta intervenção leva sempre qualquer dos adversários à superação. Naquele momento o importante não era a vitória ou derrota, mas sim o comportamento que adotamos perante um desafio.

Mudar comportamentos não é uma questão de saber, mas ensinar a fazer, aprender a fazer, fazendo. Nós somos capazes de enfrentar os maiores desafios, desde que sintamos que esses são nossos desafios. 

Mobilizemo-nos o quanto possível para sermos capaz de alterar gradualmente através da prática desportiva, comportamentos a forma como pensamos e como intervimos ao serviço dos coletivos a que fomos pertencendo.


ADALBERTO CHANTRE

Judoka
Pai de 2 filhos
Técnico de exercício físico
Licenciado em educação física e desporto
Treinador de judo
Vice-presidente associação de judo de Lisboa